Perto da Vista
ed. Imprensa Nacional Casa da Moeda
Entrevista pub.no Expresso Revista a 15 Dez. 1984, pág. 39R
Expresso, Revista,15 Dezembro, 1984, p. 39
Gérard Castello Lopes.
"Perto da Vista", perto do coração
Perto da Vista reúne imagens dos anos 50 e 60 e também trabalho recente: Gérard Castello Lopes é uma referência inevitável do património fotográfico e um fotógrafo em actividade
retrato de G.C.L. por Luís Ramos
HÁ DOIS anos, uma exposição «desenterrou» fotografias executadas pelos finais dos anos 50. Mostradas e publicadas apenas no estrangeiro, elas eram, para muito poucos, uma referência vaga na memória da fotografia portuguesa.
Perto da Vista, um livro acabado de publicar pela Imprensa Nacional, actualiza essa descoberta e vem fazer, com assinalável qualidade editorial, uma contribuição pioneira para o estabelecimento de um património fotográfico nacional.
Gérard Castello Lopes, o fotógrafo - que foi também crítico de cinema, dedica-se à distribuição de filmes e ocupou por algum tempo funções diplomáticas - voltou entretanto a pegar nas máquinas.
A propósito da exposição, Fernando Lopes escrevia há dois anos no Expresso que as fotografias de Gérard Castello Lopes deveriam ter sido imagens de referência para os cineastas da sua geração. Foi sobre as suas fotografias «antigas» e sobre as que hoje faz que o ouvimos.
Ausência de um «corpus»
- Também faltavam as referências quando começou a fotografar?
Havia uma ausência total de «corpus» cultural, no qual as gerações que chegavam se pudessem apoiar, para exaltar ou denunciar o que estava feito antes, que é o caminho normal de uma pessoa que quer criar qualquer coisa. No que diz respeito à fotografia e ao meu percurso, que foi muito curto e possivelmente pouco probante, é preciso dizer antes de tudo que o «corpus» foi procurado no estrangeiro. O meu caminho, pelo menos, insere-se dentro de uma preocupação fotográfica e estética, e até se quisermos ideológica, que vem directamente do estrangeiro: todos os fotógrafos da Depressão nos Estados Unidos, Cartier-Bresson, a foto-reportagem... tudo era uma forma de estrangeirismo.
- Havia então, aqui, a impressão de se estar a começar?
A começar, completamente. Não tinha fontes para ir à procura de um «corpus» fotográfico português... e foi com um espanto enorme que um dia descobri no Palácio Ducal de Vila Viçosa as fotografias do Benoliel, ou na galeria do Diário de Notícias (1956) as fotografias do Vítor Palla e do Costa Martins, que deram depois origem ao livro Lisboa.
O que é que havia? Tipos académicos que entravam nos concursos para ganhar medalhas e diplomas, e que mandavam fotografias aos Salons estrangeiros, mas isso para mim não tinha nada a ver com a fotografia. A fotografia era uma maneira pessoal de se exprimir e não uma espécie de concurso de beleza ou concurso de gado. Havia, por outro lado, um grupo de pessoas com as quais eu lidava mais ou menos, o António Sena da Silva, o Carlos Afonso Dias, o Carlos Calvet da Costa, arquitecto e pintor, o Nuno Calvet (o único que deu o salto para uma actividade profissional), o escultor Jorge Vieira - um grupo que tentou fazer coisas nesse campo, mas era muito difícil e muito ingrato. Até relativamente tarde, a fotografia não era uma actividade ou forma de expressão artística que fosse considerada suficientemente válida, e continua, aliás, a ser o parente pobre.
- A adequação dos olhares e das imagens estrangeiras a uma procura de fotografar a realidade portuguesa punha-se como problema a resolver?
Então não se punha!? Há aí todo um feixe de preocupações, algumas das quais não fui capaz de resolver adequadamente... Penso que foi justamente a falta dessa espécie de «corpus» cultural que me precedesse e guiasse (a falta desse apoio cultural num sentido largo) que me fez enveredar, no meu caso particular, por sendas que me parecem, com 25 anos de distância, não terem sido as mais adequadas. De uma certa maneira, penso hoje que não fui fiel a um olhar que eu tinha - não sei se ele era bom ou mau - e hoje estou desesperadamente à procura de lhe reencontrar uma certa pureza ou uma certa limpeza, e a tentar livrar-me das escórias e aderências que julguei que tinha que impôr a mim próprio quando comecei.
- Refere-se à intenção com que se fotografava?
Exactamente, e daí que tenha escolhido para meu prócere e émulo o Henri Cartier-Bresson. Estava muito embalado na ideia de que a fotografia era uma coisa que podia, de facto, levar - custa a dizer estas coisas hoje - a uma maior compreensão entre os homens. Isso conduziu-me a um beco sem saída... do qual acabei de sair por eliminação: desisti de correr. Ainda tentei encontrar uma porta de saída pelo estrangeiro, mas aí foi-me dito, e com muita justiça, que as minhas fotos não tinham ainda (as pessoas eram sempre caridosas) aquela força e intensidade que pudessem justificar o começo de uma carreira: teria de ir aos 35 anos, casado, com dois filhos, fazer uma aprendizagem para a qual não tinha talvez talento e sobretudo, por essas dúvidas todas, não tinha coragem.
«Quero ver bem»
- O título do seu livro parece ligar-se a uma reflexão própria sobre a fotografia. O que é Perto da Vista?
O livro nasce por uma ideia da Ether/Vale Tudo Menos Tirar Olhos, e começou pelo mais urgente, a selecção dos negativos, a ampliação, a triagem final, por aí fora: um dia, modestamente, perguntei que título o livro ia ter. E claro que tinha que recair sobre mim o ónus de encontrar o título do meu próprio Iivro... Durante uns dias esteve para ser urna expressão que figura no meu texto: artimanhas do diabo - mas parecia um bocado esotérico e não fiquei satisfeito. Depois, estava em Paris, ocorreu-me de repente a frase «longe da vista, longe do coração», e nesse instante soube que era exactamente isso: Perto da Vista.
- De algum modo, o titulo distingue o que é ver e fotografar (perto de ver)...
Para mim, ver é uma coisa muito misteriosa ... Eu não gosto de reticências, pontos de exclamação, ornamentes gráficos dessa natureza, mas de certa maneira eu teria desejado que o título fosse Perto da Vista seguido de reticências. Queria que ficasse implícita a ideia de perto da vista, perto do coração. A gente só ama de facto aquilo que vê. A fotografia, como todo o acto de criação, é consequência de uma pulsão que se tem por qualquer coisa, e isso não pode ser feito sem amor. Portanto, o título é uma maneira que eu encontrei, relativamente simples, de dizer que eu quero ver bem, para ver bem tenho de ver ao pé, para amar tenho que ver bem...
- O seu livro é uma peça de um «corpus» fotográfico que falta, mas também não é só um objecto de património, porque continua a fotografar.
Até é - essa é a minha esperança -, porque eu sou duas pessoas e, 25 anos depois, olho para as minhas fotografias com bastante carinho e bastante vinagre. Gostaria que este livro pudesse servir para o estabelecimento de um «corpus»), como trampolim ou refutação. Mas ele tem, por outro lado, a utilidade de mostrar às pessoas que é possível produzir um livro com aquela extraordinária qualidade, para a qual não sou tido nem achado - é obra exclusiva de uma coisa que se chama Ether e dos operários que funcionaram na Litografia Tejo e fizeram, no quadro relativamente subdesenvolvido das actividades gráficas em Portugal, um verdadeiro milagre. Também não posso deixar de falar no senhor Jules Steinmetz, um homem que imprime as fotografias de alguns dos maiores fotógrafos do mundo, entre os quais Cartier-Bresson. As fotografias que ele imprimiu permitiram-me, de certa maneira, vê-las pela primeira vez.
- O que pensa sobre aqueles que fazem actualmente fotografia em Portugal?
Que todos eles - o Nozolino, o Molder, o Nuno Calvet, o Pavão, o Gageiro - estão metidos na mesma batalha que foi a minha. Penso também que têm uma cultura e uma informação fotográfica que eu não tinha, o que me dá uma grande alegria, mesmo que não goste de algumas fotografias dessas pessoas. O que é importante, é que se façam fotografias em Portugal.
A charada do real
- A sua reflexão anterior sobre o que é fotografar e ver afasta-o das preocupações da fotografia conceptual?
Curiosamente, não. Aliás, a última fotografia do livro mostra-o. A minha fotografia, neste instante em que estou a reaprender a fotografar, mas a passos largos porque há uma anterior experiência vivida, - se é preciso pôr-lhe uma etiqueta - é uma fotografia mais conceptual. Quero dizer que estou muito mais interessado neste instante em encontrar, em poder transmitir através das minhas fotografias o que me parece a charada do real. Queria que as minhas fotografias fossem identificadas e ao mesmo tempo que não significassem nada; que elas transmitissem só uma alegria, um prazer, uma euforia, ou o que eu sinto quando vejo uma grande fotografia, uma espécie de rnaravilhamento.
- Há um maior lugar ao artifício, à «artimanha», nas suas fotografias recentes?
Não posso estritamente falar de artifício, porque aquilo que fotografo e que parece talvez um artifício ou uma artimanha são coisas que «lá estão». Não há mais do que impôr-lhes um rectângulo de roda, da maneira que parece ao fotógrafo a mais adequada para transmitir aquilo que está a sentir em relação ao real que está a registar. Eu não faço nada para criar o artifício. As minhas fotografias não são nesse aspecto uma ficção, embora eu ache que toda a fotografia, como todo o cinema, é uma ficção. Mas não me dedico à «mise-en-scene». O que acontece comigo, hoje, é que tenho uma cada vez maior abertura: a fotografia não pode ser uma coisa ideológica no sentido de compartimentada - se há uma ideologia, e há, ela não se situa, para mim, a esse nível. Era feliz se fosse capaz. de fazer bilhetes postais bem feitos.
Estou a atravessar neste momento um período que me parece um bocado formalista, estou a rebuscar as virtudes de uma composição mais ou menos clássica. O que procuro é fazer imagens que tenham dentro de si uma tensão que faça com que as fotografias não sejam centrífugas, não sejam um microcosmos suficientemente «in se» - não sei em que medida é que o consigo, mas é aí que está a minha pesquisa, sei que é esse o caminho. Queria que as minhas fotografias evocassem qualquer coisa que está para fora de campo, que fossem centrípetas.
Quero evocar o que está para fora do quadro, quero evocar um nexo no caos. No limite, gostava de obter o mesmo resultado com elementos imediatamente identificáveis, fazer isso com uma cara ou com corpos, ou com situações mais pedestres, menos dramáticas ou artificiosas. Tentarei exprimir através das minhas fotografias um lado misterioso, um lado paradoxal do que me parece ser o real que me cerca, sem isso parecer uma coisa predominante, um pouco como o cinema de Hitchcock: encontrar o mistério das relações entre as pessoas, o que provoca o medo, porque viver é muito perigoso e fotografar também.
- Já não se trata de uma confrontação com as pessoas fotografadas, como nos antigos trabalhos?
Agora a confrontação é comigo próprio. Isto é, também, quase uma terapêutica.
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(ver cat. CCB 2004, entrev. Luisa Costa Dias, os concursos e os álbuns do grupo, mais José Manuel Afonso Dias, Gil Graça, Michael Barrett, Maria do Céu Vieira
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