Espanha arcaica / Ventos de Espanha
Expresso Cartaz 20-5-1995
FONTES DA MEMÓRIA II
Centro Cultural de Belém
Las Fuentes de la Memoria II. Fotografía y Sociedad en España, 1900-1939
exposição e livro-catálogo de Publio López Mondéjar
ed. Ministério de Cultura e Lunwerg Ed.,
Já foi mais de uma vez apontada a contradição que existe entre o excepcional panorama da pintura e da escultura espanholas na primeira metade do século XX e o lugar praticamente irrelevante que ocupa a sua fotografia no contexto internacional, como, em geral, se pode confirmar nesta grande exposição trazida a Lisboa.
Apesar de ter sido visitada por alguns estrangeiros ilustres (Coburn, Annan, Cartier-Bresson, Capa, etc), a Espanha não produziu ou não projectou os seus próprios grandes fotógrafos, certamente porque o novo «medium» é pela sua própria natureza uma invenção moderna, que «participa do progresso técnico geral e da 'civilização'» (M. Frizot, Nouvelle Histoire de la Photographie), e o país permaneceu por muito tempo condenado ao imobilismo de uma sociedade pré-industrial, autoritária e inculta. A pintura, aliás, fez-se quase sempre nas condições tornadas possíveis pela emigração parisiense.
História da fotografia espanhola nas primeiras quatro décadas deste
século, vista na perspectiva das suas «interrelações com a realidade
social, económica e cultural do país», esta exposição procura «recrear
uma imagem da Espanha que já não existe» e pode ser lida como a
exemplificação desse atraso paralelo da fotografia e da sociedade. Um
tal programa é levado a cabo com um forte sentido crítico sobre o
trágico passado recente — «um espanhol, por ser espanhol, é um homem
diminuído, porque a Espanha não é ainda uma nação civilizada», dizia
Pérez de Ayala no início do século (no catálogo) —, mas é provável que
no processo da demonstração se insinue algum excessivo esquematismo,
quando o critérrio documental de utilização das imagens se mostra
indiferente às qualidades estéticas da fotografia.
Embora a mostra seja dedicada a um panorama fotográfico comprovadamente
menor e esteja organizada com uma concepção global a vários títulos
discutível, além de não ser beneficiada pelas precárias condições de
acolhimento do CCB, ela não deixa de ser importante e significativa,
até por mostrar, num país que continua a ser incapaz de ultrapassar o
seu quase deserto fotográfico oficial, como outros procuram ver e
pensar o seu passado. E a pouca notoriedade ou o anonimato dos autores
não deverá diminuir a disponibilidade para apreender a força explosiva
de muitas das imagens, onde um mundo primitivo ou convencional se
encontra com a fotografia e onde se manifesta toda a intensidade das
contraposições míticas entre reacção e revolução.
Las Fuentes de la Memoria II. Fotografía y Sociedad en España,
1900-1939, exposição e livro-catálogo da autoria de Publio López
Mondéjar (ed. Ministério de Cultura e Lunwerg Ed., 252 págs, 8.990$00),
é a segunda parte um dos grandes projectos espanhois lançados, em 1989,
no quadro das celebrações dos 150 anos da divulgação da fotografia.
Exposta em 1992, com base em pesquisas realizadas em dezenas de
arquivos e em anteriores iniciativas monográficas, ela entrou a seguir
em itinerância, numa versão abreviada de 225 para 160 imagens. No
«circuito nacional» indicado no livro, refere-se, quanto a 1995, a
passagem por Sevilha, León, Oviedo, Lisboa (Portugal), Cáceres-Badajoz,
Úbeda (Jaén) e Tarragona, o que, para lá do real interesse desta
iniciativa, pode ser mais uma prova que o CCB está a ser gerido com a
ambição equivalente ao de uma instituição de província — espanhola.
A montagem que aqui se apresenta estrutura-se numa sequência monótona
de núcleos dedicados ao pictorialismo, retratismo, documentalismo,
«fotoperiodismo» (por fotojornalismo!), vanguarda e Guerra Civil, com
um alinhamento das imagens, certamente importado, que não segue a ordem
cronológica e cuja lógica nem sempre se conseguirá entender, até porque
aqueles tópicos se sobrepõem com frequência. Num caso, o nº 135, uma
obra horizontal é mostrada ao alto e ao longo de uma das paredes
reproduz-se uma cronologia espanhola preguiçosamente traduzida.
Mais grave ainda é o facto do «Jornal» da exposição não incluir
informação suficiente para que se apreenda o respectivo propósito,
tratando-se de uma edição de tal modo descuidada que nela se anuncia a
versão integral da exposição e não a actual edição para itinerância
(Seymour e Cartier-Bresson, por exemplo, não estão presentes), bem como
a inclusão de um número de provas originais que está muito longe de se
confirmar. Mas, se é inadmissível numa exposição histórica a ausência
de indicações sobre processos e características das provas, neste caso
o mal virá certamente da origem: o catálogo também não as menciona e é
também nele, por exemplo, que tem origem a confusão entre um tal Hühn e
o mais famoso Heinrich Kühn.
Mais concretamente, é a própria caracterização de todo o núcleo
pictorialista adoptada pelo autor que enferma de contestáveis
preconceitos a favor da fotografia directa. O que aí se expõe, com uma
insistente rejeição crítica desenvolvida no catálogo contra «os
preciosos ridículos do pictorialismo nacional», é uma amálgama de toda
a fotografia artística produzida nas primeiras décadas do século e
destinada ao circuito expositivo dos Salões, sem distinção entre o que
é a continuidade arcaizante de modelos académicos vitorianos, alegórica
e kitsch, a inspiração no naturalismo de P. H. Emerson e no simbolismo,
o pictorialismo enquanto expressão de uma nova modernidade fotográfica
que explora os valores próprios do «medium» e, por fim, a sobrevivência
eventualmente anacrónica do uso das técnicas pigmentárias em imagens
que podem já revelar a originalidade de olhares marcados por
informações vanguardistas.
Neste campo, haverá que reconhecer as qualidades da obra de José
Ortiz-Echague, que impôs, ao longo do franquismo e com uma intenção
documental ideologicamente coerente, a sua tipologia da «Espanha
eterna», ao lado de um muito curioso Miguel Goicoechea, exímio no uso
das emulsões nobres, ou o interesse de dois autores mais ecléticos como
Pla Janini (As Parcas, 1922, não exposto) e Antoni Campañá. As
ausências de Josep Sala, divulgador e vanguardista, e de Ramon Batlles,
pioneiro do uso da cor, comprovam o carácter redutor deste panorama
apenas esquemático.
Já no domínio do retrato, são as imagens de Valle-Inclan e Unamuño (de
Moreno), Castelao (pelo português Jaime Pacheco, 1878-1954,
estabelecido em Vigo), António Machado e Perez Galdoz (Sanchez Garcia e
S. Portela), que se impõem como aproximação a um universo intelectual
em ruptura com a instalada «anemia mental». Quanto ao sector
documental, é a sobrevivência de um universo rural que se observa em
toda a sua dimensão de miséria e dependência clerical, mas é provável
que neste inquérito a busca das marcas de arcaismo tenha predominado
sobre a atenção aos sinais de mudança e a regra geral sobre a
possibilidade da excepção. Num panorama terrível, sempre marcado pela
procura do pitoresco e do típico, pouco atento ao crescimento de um
proletariado cuja combatividade se observará mais adiante, só F.
Trujillo se volta para o mundo industrial (os estaleiros), enquanto o
galego José Suárez se destaca nos anos 30 com um renovado dinamismo do
olhar, para ser depois da Guerra Civil condenado ao exílio.
O percurso do «fotoperiodismo» serve de marcação rápida das convulsões
políticas das primeiras décadas e ganha fôlego histórico com a
cobertura das duas frentes fratricidas da Guerra Civil. Agustín
Centelles reconhece-se como o repórter da Catalunha republicana,
enquanto se volta a ver A. Campañá, ao lado de Diaz Casariego, do
clássico de Robert Capa e das reportagens de Hans Namuth/Georg Reisner.
Brevemente referida, a vanguarda fotográfica dos anos 30 surge ligada
ao universo da publicidade e do grafismo político, dando um novo fôlego
à foto-montagem de origem dadaísta, com Catalá Pic, Nicolas de Lekuona
e Josep Renau. Seria um breve intervalo antes das sombras se abaterem
por mais algumas décadas.
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