"Cruzamentos peninsulares"
Retrospectivas de dois fotógrafos espanhóis que renovaram a fotografia documental a partir dos anos 50
Expresso Actual de 19-06-2004
Começamos a conhecer melhor a fotografia espanhola, a sua história e o presente, do que a portuguesa. Depois de Francesc Català-Roca, apresentado em Lisboa numa exposição do Museu Rainha Sofia centrada em dois livros de 1954, e a seguir à antologia «150 Anos de Fotografia Espanhola», exibida pelo Centro Português de Fotografia, duas outras mostras chegam pela mão do Instituto Cervantes à Cadeia da Relação. Dão a conhecer dois fotógrafos que continuam activos e que, no final dos anos 50, participaram da afirmação de um olhar moderno sobre a realidade ainda trágica do seu país: Ramón Masats e Ricard Terré.
Para além da importância das respectivas obras, elas permitem traçar um paralelo e interrogar as diferenças entre esse momento espanhol de ruptura e a mais efémera e quase clandestina actividade, em Lisboa, de uma geração equivalente que contou com Victor Palla e Costa Martins, Sena da Silva, Carlos Afonso Dias, Carlos Calvet e Gérard Castello-Lopes.
Foram escassos, até aos anos 80, os momentos de convergência ou de contacto entre a fotografia dos dois países ibéricos (a de Espanha foi quase sempre, aliás, uma realidade plural). Na década de 50, sob duas ditaduras semelhantes, a recusa do universo esclerosado dos salões e o aparecimento de criadores sintonizados com a renovação fotográfica do pós-guerra (de Cartier-Bresson e do humanismo interveniente às novas modalidades de expressão subjectiva protagonizadas por Robert Frank e William Klein) manifestam-se com uma notória simultaneidade, mas os seus destinos foram diferentes.
Em Portugal, apesar da publicação de um dos melhores álbuns da década (Lisboa, Cidade Triste e Alegre), que só muito mais tarde adquire o merecido reconhecimento interno e internacional, a actividade dos renovadores é apenas um sobressalto de amadores que não alcançam qualquer visibilidade significativa e depressa abandonam a fotografia (algumas outras pistas possíveis de renovação estão por estudar). Em Espanha, os novos autores, que surgem no quadro das associações fotográficas em oposição às convenções sobre fotografia artística e criando as suas próprias organizações e grupos alternativos, obtêm uma imediata repercussão pública e mesmo internacional, e a ruptura tem, em geral, continuidade numa prática profissional que se impõe na imprensa, na publicidade e na edição de livros. É também em simultâneo, no início dos anos 80, passada a deriva antidocumental dos 60/70, que a importância destas duas gerações com distintos destinos é reavaliada, em Portugal e em Espanha, embora sejam também diferentes as consequências dessa redescoberta, em termos de projecção pública e de consolidação de uma informação histórica com continuidade.
Significativamente, é também de Espanha que chega o catálogo da exposição «Vidas Privadas», na qual se reúnem, pela primeira vez, fotógrafos dos dois países dos anos 50 até à actualidade, através de obras pertencentes à Fundação Foto Colectania, sediada em Barcelona e activa desde 2002, em torno de um projecto coleccionista que envolve Espanha e Portugal (www.colectania.es).
Com uma ordenação por décadas, aí estão representados Gérard
Castello-Lopes, Fernando Lemos, Jorge Guerra, Sena da Silva e, quanto
aos tempos mais recentes, António Júlio Duarte, Augusto Alves da Silva,
Inês Gonçalves e José Luís Neto, Helena Almeida e Jorge Molder, estes
últimos com trabalhos já dos anos 2000, o que não corresponde a uma
acertada sequenciação cronológica. O livro conta intervenções
memorialistas de Castello-Lopes e Fernando Lemos sobre os anos 50,
enquanto Daniel Blaufuks dialoga sobre os anos 80/90 com Filipa
Valladares (representante em Portugal da Fundação); pelo lado espanhol
escrevem Carlos Pérez Siquier, Oriol Maspons, Jorge Rueda, Juan
Fontcuberta, Jorge Ribalta, Javier Vallhonrat, todos eles fotógrafos
ligados a revistas e grupos interventivos ao longo das várias décadas.
O confronto entre obras não pretende ser exaustivo, mas a ausência de
provas de época dos primeiros autores portugueses marca logo um
evidente desequilíbrio entre os dois contextos ibéricos.
Enquanto o Instituto Cervantes nos traz sucessivas mostras da criação espanhola, estimulada e investigada por uma grande diversidade de agentes, a Foto Colectania comprova que existe para lá da fronteira vontade de aprofundar um movimento de trocas que não encontra ambição e meios disponíveis do lado de Portugal, onde a política para a fotografia se institucionalizou numa entidade única (quase) sem condições para fazer mais do que receber exposições alheias.
Ramón Masats (n. 1931) e Ricard Terré (n. 1928) expuseram, em conjunto com Xavier Miserachs, em 1957, na Agrupación Fotográfica de Cataluña, e de novo em 1959, já no âmbito de uma muito activa associação sediada numa periférica cidade andaluza, Almería, onde o grupo Afal protagonizava a oposição de um novo compromisso ético com a realidade do tempo espanhol ao academismo pictural-realista que tinha em Ortiz Echagüe uma excepcional figura tutelar identificada com o regime. Outros autores activos em Barcelona, como Oriol Maspons, Joan Colom e Leopoldo Pomés, ou em Madrid, como Gabriel Qualladó e Paco Gómez, rompiam o «tempo de silêncio» com a aparição de novos órgãos de imprensa menos amordaçados pela censura. Entretanto, é significativo que essa ruptura tenha obtido um rápido eco exterior, com a chegada imediata de Masats e Terré às exposições da «fotografia subjectiva» promovidas por Otto Steiner e do segundo (e outros) às colecções do MoMA, então dirigidas por Edward Steichen.
Portugueses e espanhóis da Fundação Foto Colectania
Ramón Masats começou em 1957 a trabalhar para a «Gaceta Ilustrada», de Madrid, e também para «Ya» e «Arriba», fazendo da profissão de repórter uma oportunidade de subverter o oficialismo fotográfico da época. Publicou pouco depois dois livros marcantes: Neutral Corner (1962), sobre o submundo sórdido do boxe, e Los Sanfermines (1963), dedicado às festas populares de Pamplona, em honra de San Fermín, que Hemingway celebrizara em The Sun Also Rises (Fiesta), já em 1926. Passado ao cinema e à televisão a partir de 1965, voltou às exposições e aos livros nos anos 80. Ricard Terré, pelo seu lado, interrompeu a actividade fotográfica em 1960 para se dedicar aos negócios familiares, em Vigo, depois de ter surgido a público com uma das linguagens mais audaciosamente modernas do seu tempo, e regressou em 1982, no mesmo ano em que se realizam as primeiras retrospectivas sobre a vanguarda documental dos anos 50 (notem-se as semelhanças com o itinerário de G. Castello-Lopes). Com presenças em Arles em 1994 e 96 (e também nos Encontros de Braga por duas vezes), é hoje, aos 75 anos, um fotógrafo distribuído pela agência Vu de Paris (tal como Paulo Nozolino).
A retrospectiva de Masats vem do Círculo de Bellas Artes de Madrid, acompanhada por um belo álbum das edições Lunwerg (1999), e ocupa três salas da Cadeia da Relação, a última dedicada à mais recente produção a cores, mais abstracta e formalmente estilizada. Antes, as imagens escolhidas das suas inúmeras reportagens são um largo itinerário pelas paisagens periféricas de Espanha (com uma breve paragem cáustica no Casino do Estoril, em 59, e também há notáveis retratos), fixando um território humano marcado pela pobreza e o atraso já nas vésperas da sua transformação desenvolvimentista. Mas o testemunho que delas dá Masats, com uma excepcional capacidade de sintetizar graficamente espaços intensamente luminosos (e o uso insistente de grandes angulares), é sempre mais um enunciado de questões e de problemas do que afirmação de evidências retóricas. O registo documental, poderoso enquanto ícone, abre-se à interrogação sobre os sentidos do real.
Ricard Terré, presente com uma mostra vinda da Galerie Vu, dirigida por Christian Caujolle, tem, pelo contrário, uma obra de admirável concisão temática, em que a observação dos ritos da Semana Santa, à margem de todo o folclorismo (em Espanha e também em Braga, já nos anos 90), se prolonga no tema do Carnaval, como uma reflexão obsessiva sobre a morte e a infância, a religião e as máscaras, sustentada pela inquietante presença dos negros e o ritmo estrutural das composições. Uma montagem não cronológica sublinha a continuidade dos dois tempos de trabalho de Terré, interrompida por imagens em grande formato (já adoptado nos anos 50), com um seguro sentido das escalas, enquanto três imagens das mulheres da Nazaré, de 1964, acrescentam a marca pessoal a um tema então tratado por inúmeros fotógrafos estrangeiros.
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