"Contra-mundos"
As Histórias de René Bertholo
Expresso Cartaz - capa 15-07-95
RENÉ BERTHOLO
Gal. Fernando Santos, Porto
A pintura de René Bertholo realiza-se lentamente e mostra-se com longos intervalos. Perante cada série de novos quadros, sempre em número reduzido, o espectador não espera a descoberta de uma diferente «fase», mas a oportunidade de reconhecer o discurso próprio do pintor, o qual se desdobraria, como sucede com a criação literária, nos sucessivos episódios ou variações de um mesmo universo ficcional.
Essa expectativa de continuidade seria sedimentada pela constante recorrência de sinais, figuras e objectos, tanto identificáveis como «abstractos», que viajam de quadro em quadro, circulando entre diferentes cenários e contextos narrativos, num infinito jogo de espelhos ou de projecções. Um universo de situações visuais que, por isso mesmo, permanece tão aberto à multiciplicidade de leituras como um qualquer instrumento de adivinhações, ou como o I King, o livro chinês que R.B. gosta de dar como exemplo.
Dos «quartos» fechados que eram os cenários das últimas pinturas
parisienses passara-se sem convulsões para a paisagem e a casa algarvia
do pintor, actualizando-se ao sabor das circunstâncias biográficas a
grelha das imagens recorrentes e os seus espaços de inscrição e
metamorfose.
Uma cara com a língua de fora, uma paleta voadora com a sua coroa de
pingos de luz, os aparelhos eléctricos inventados (as electrónicas e
«mozikas» que coexistem com a sua pintura — e que têm a sua primeira
apresentação pública anunciada para 5 de Agosto, às 23h, na Casa das
Artes de Tavira), os pássaros mecânicos que também já foram aviões, a
casa rural e as cadeiras, a bandeja com as chávenas do café, as rodas
dentadas e os fusos metálicos — elementos presentes nas pinturas agora
mostradas —, têm uma genealogia de muitos quadros anteriores e
integram-se num léxico pessoal em que o quotidiano e o sonho se fundem
numa «pintura de tipo surrealista» (de um surrealismo que «não foi
inventado pelos surrealistas», segundo uma entrevista de 1984).
Mas, de facto, o pintor não prossegue apenas um exercício
essencialmente lúdico de reconstrução de «puzzles», inventários ou
falsas histórias que se entenderia como sequência linear de uma Nova
Figuração historicamente definida pelas «acumulações de imagens» dos
anos 60 e prosseguida, depois de um intervalo dedicado aos objectos
motorizados e às esculturas, numa vertente narrativa tomada à banda
desenhada. Uma vontade de comunicação expressiva, mesmo se protegida
pela ironia e a repetição dos signos, uma distância crítica da
vulgaridade das imagens massificadas que faziam a «regra» da Pop foi-se
sobrepondo ao exercício formal do jogo e da irrisão.
Entretanto, os últimos quadros de R.B., que se apresentam sob o título
comum de «Quadricomias», voltam a estabelecer uma situação de mudança
numa obra sempre em inquieto movimento, mesmo se ela é mais vista pelo
lado da continuidade de um «estilo». Não se trata de um momento de
ruptura evidente, como foi, apenas quanto aos meios de trabalho e à
escala dos objectos, o trânsito da pintura às peças mecânicas e,
depois, o regresso à tela, mas de um contexto particularmente intenso
de interrogações sobre a prática do pintor e de emergência de possíveis
novas direcções e conteúdos.
Curiosamente, o título da exposição parece referir-se a um processo
fotográfico que traria às novas pinturas a distância ou a frieza da
reprodução mecânica, mas é ao resultado inverso que se assiste. R.B.
restringiu a paleta a quatro tubos de óleo — azul cobalto, vermelhão,
amarelo cadmium e um cinzento quase preto — e passou a aplicar as cores
em camadas sucessivas, embora admita, sem excessiva rigidez, a
possibilidade de algum remate final, se necessário.
Nesse trabalho por transparências, idêntico ao processo da selecção das
cores para a edição tipográfica, os quadros ganharam, paradoxalmente,
uma maior visibilidade dos efeitos picturais, onde antes predominava a
presença de sinais gráficos. As superfícies de cor lisa, que preenchiam
o desenho prévio dos objectos, depois de já terem ganho volumes e
sombras, deram agora lugar a novas qualidades de vibração e textura. Os
contornos das figuras, antes bem definidos, tornaram-se mais imprecisos
e flutuantes, até à evental indistinção entre a forma e o fundo.
Aplicando a cor segundo as novas regras de um processo mecânico
(«porque não se pode estar sempre a fazer o mesmo, ou talvez porque
achei engraçado»), R. B. passou a «trabalhar a matéria por si mesma»,
modelando as superfícies de um modo, se se quiser, «mais tradicional,
ou mais impressionista», como ele próprio sugere.
Há outras mudanças igualmente significativas.
Observava-se, nas telas das anteriores exposições, a construção de um
espaço sempre cenográfico onde se desenrolava a «acção»: uma casa ou
uma paisagem — quarto interior, telhado ou terraço exteriores, chão
de terra, ou cortina corrida (um palco), muitas vezes vistos sob o
ângulo picado de enquadramentos que reforçavam a situação
cinematográfica ou a sugestão ficcional. Desde o final dos anos 70,
esse cenário repetia-se duas, três ou quatro vezes, no interior do
mesmo quadro, como uma falsa sucessão temporal tomada das histórias aos
quadradinhos (Magritte usara a mesma composição em O Homem do Jornal,
de 1927-8 — e ele parece ser, além de Klee, uma das referências
subterrâneas de R.B.).
Nos últimos quadros — mas é fácil encontrar algumas pistas já esboçadas
na exposição anterior, em 1992, na Nasoni —, o espaço pode surgir
inteiramente indefinido e os objectos ou figuras das «histórias»
pintadas por R.B. já nem sempre se inscrevem num esquema cenográfico,
pairando sobre um fundo impreciso e flutuante, que se dirá abstracto. É
um espaço só pictural, tal como sucedia nas antigas «acumulações», mas
aí estáva-se perante superfícies neutras sobre as quais se depositavam
os inventários de sinais.
Por outro lado, se antes os elementos reconhecíveis e abstractos que
povoavam a pintura de R.B. eram sempre miniaturais, eles cresceram
agora de dimensões e as antigas ou novas formas podem ocupar mais
destacadamente o plano do quadro. Por provável consequência, no mesmo
processo de transformação dos processos picturais cresceram os formatos
de algumas telas e tornou-se até possível ao pintor reexaminar a
circularidade das suas imagens, fazendo «remakes», totais ou parciais,
de obras anteriores: o tríptico Notas Biográficas, a partir de
aguarelas de 74, e O Quarto da Torre, revisitado desde 79.
A divisão da tela em espaços e episódios sucessivos já não é,
entretanto, tão necessária ou evidente — os papéis rasgados com
desenhos que sobrevoavam ou desciam sobre algumas cenas cresceram e
podem, por vezes, preencher (quase) toda a composição, no que seria um
efeito de colagem cubista se esses fragmentos não fossem sempre
ondulantes ou voadores (O Coelho do António, etc ou Os Mal Educados).
Num caso (O Novo Instrumento, na capa do «Cartaz»), há uma figura
central que, pela primeira vez — contra «o que sempre evitei», diz
R.B. —, ocupa toda a zona central da tela, numa pintura dentro da
pintura que se vê sob a chuva de pequenos papéis pintados.
Assiste-se também à entrada de novos elementos iconográficos. Há um
coelho que corre, visível nos fragmentos dos papéis rasgados que
esvoaçam — é uma referência directa ao país das maravilhas de Carrol,
mas revisto através de um desenho de António Dacosta; outras irrupções,
uma carochina de história infantil e uma figura andrógina que pode ser
o Capuchinho Vermelho (o título deve ser interrogado) remetem para a
mesma ordem de efabulações.
Mas o que aqui domina como mais forte novidade temática é a presença de
uma vegetação proliferante, luxuriante e invasora (Invasão Verde) que
pode ocupar, ainda (?) repetida numa composição dupla, mas
estrurando-a, toda a superfície do quadro. São ramagens ascendentes que
explicitamente o pintor associa à simbologia da Árvore da Vida (ver
pág. 3) e também à Coluna Sem Fim, na versão dada por Brancusi, mas
que também se podem referir às histórias infantis do feijoeiro mágico.
O seu tratamento pictural é algo de novo na obra de R.B. que parece
resultar de um renovado prazer dos meios da pintura, num exercício de
representação minuciosa que se diria naturalista se o efeito cromático
da «quadricomia» não lhe desse também uma aparência artificial e
inquietante.
Uma leitura em continuidade da obra de R.B. certamente viria destacar,
sobre as referência ao quotidiano do pintor, o interesse pelo explorar
da indistinção entre sonho e realidade, bem como a presença crescente
do enigma no que parecia ser só jogo e irrisão. Por outro lado, se a
dimensão autobiográfica, o autoconhecimento e a reinterpretação do
mundo é crescentemente visível, torna-se mais poderosa a necessidade da
criação de um universo imaginário que é também reflexão sobre os
elementos e os meios dessa criação.
João Pinharanda e Bernardo Pinto de Almeida intitulam os seus textos
para o catálogo (de excelente produção) «Manual R.B. da pintura
maravilhosa» e «Mundo de aventuras». Nesses títulos parece ressoar,
sobre referência à efabulação e à invenção lúdica, algo da ideia de
«contra-criação» com que George Steiner liga o engendramento de formas
significantes ao acto primeiro da criação. «Em todos os actos de arte
de valor bate o pulso de uma alegria em cólera». (Até dia 31)
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