DEZ QUADROS. 1998-2000
catálogo da Galeria Fernando Santos, Porto
“Não estou interessado em reproduzir imagens que lembrem demasiado a realidade tal qual ela é” – René Bertholo
DOIS títulos interrogados perguntam o que no quadro acontece: O que vê ela? e O que é isto? Poderiam entender-se como variantes de um possível “Sem título”, mas essa é uma opção ou fuga que René Bertholo nunca usou em pintura.
Um quadro pode ser uma superfície de efabulação visual, o espaço (pictural) de um intermınável processo imaginativo, começado pelo pintor e depois prolongável por cada um dos espectadores. Um título é uma primeira pista, uma orientação oferecida à imaginação do observador… Mas nunca se trata de chegar à decifração de um enigma, ou de ler uma história. Como RB não ilustra no quadro um tema ou uma narração prévios (pré-concebidos, pré-existentes), o título que propõe é uma invenção produzida já na qualidade de espectador do quadro pintado. Pode ser um comentário ao quadro, mais ou menos cifrado, ou um exercício de auto-ironia sobre o seu próprio trabalho.
É possível entender os dois títulos referidos como interrogações feitas pelo pintor diante do seu próprio trabalho: que é que isto quer dizer? que é que eu fiz? Serão duas situações indicativas da própria relação do pintor com o seu trabalho, exprimindo a surpresa face ao que de inexplicado e inexplicável ocorre no quadro. “Quase se poderia dizer que é feito ao acaso, só que é o meu acaso, que não é assim tão acaso como isso”, diz RB. Se, necessariamente, ele escolhe as coisas que vai fazendo aparecer nos estudos dos seus quadros, e que vai buscar a desenhos e quadros anteriores, as razões dessa selecção ficam por conhecer pelo próprio autor. “Porque é que uma coisa me parece mais interessante do que outra? Não sei. A maior parte das vezes não sei, é intuitivo.” Entre o que é voluntário e o que é sonhado de olhos abertos pelo pintor, a diferença não é acessível ao espectador e, aliás, pouco lhe importará. Para RB “as coisas são interessantes na medida em que possam ajudar a sonhar de olhos abertos”.
Por outro lado, os títulos interrogados centram aqui a atenção do observador sobre personagens que olham: um rosto frontal de mulher de olhos muito abertos - em que se reconhecem os traços da mulher do pintor, mas não se trata de um intencional retrato - e um homenzinho que percorre um campo de erva, de binóculo em riste, “uma pessoa perdida ou isolada, sozinha” (RB). Entre os personagens que olham e o observador que vê estabelece-se uma situação de identificação ou pelo menos de continuidade, mediada pelo título interrogativo proposto pelo pintor. Ninguém tem aqui certezas, e os quadros não se resolvem por uma qualquer decifração de propósitos, de sentidos ou razões; eles não remetem para algo visto que lhes seja exterior, mas para o próprio acto de ver, que é por si mesmo indissociável do interrogar, reconhecer, imaginar.
O que haverá de intimidade pessoal em O que vê ela?, mesmo que o retrato de Elna não quisesse ser, de facto, um retrato? E no caso de O que é isto?, o título pode ser um comentário do autor a respeito de uma fórmula de organização do espaço do quadro, com um personagem único e centrado, que é muitíssimo rara na sua obra. Mas o homem do binóculo já aparecera, pelo menos, num quadro intitulado Ver de perto, de 1989.
Poderia ser curioso procurar os outros escassos precedentes de títulos interrogados existentes na pintura de RB. Um deles, E o Capuchinho Vermelho?, de 1994, parecia reagir à inesperada aparição de uma personagem literária numa pintura que se constrói sempre como um universo de referências pessoais, com raríssimas apropriações ou citações explícitas, e que sempre insistiu em recusar direcções narrativas e ilustrativas. Noutro quadro perguntador, Qui chasse qui?, de 1989, surgia já a personagem mascarada que RB reconhece agora como uma auto-representação.
DOIS dos quadros são construídos por fragmentos de outros quadros: Confusões e Eclipses. O primeiro já figurou na retrospectiva de RB no Museu de Serralves, e o outro é o último da presente série e foi intencionalmente organizado a partir de elementos que se podem reconhecer nas nove telas cronologicamente anteriores da exposição. Eclipses é como um índice das obras expostas, cabendo a cada espectador atento sinalizar a origem de cada um dos fragmentos; é um fecho triunfal do cometimento que representou esta série de dez telas de grande formato quadrado a que Fernando Santos o desafiou; é um enunciado sobre o processo de trabalho seguido por RB (“um quadro sai sempre de outro quadro”, ou de vários outros) e é ainda uma experiência evolutiva quanto aos meios propriamente picturais de conjunção (colagem ou fusão) entre os fragmentos que compõem cada quadro, que vão viajando de quadro em quadro.
Em Confusões inscrevem-se dezenas de fragmentos de telas ou de desenhos coloridos, de bordos irregularmente recortados, que esvoaçam e ondulam, de um modo até bem ilusionista, sobre um fundo vago e quase totalmente oculto, embora deixando ver as sombras desses desenhos flutuantes. É um tipo de acumulação e espalhamento que vem – agora com maior complexidade e mais qualidade pictural - dos trabalhos feitos nos inícios dos anos 60, não destinguindo coisas ou imagens identificáveis e “abstractas”, destruindo as regras da composição centralmente hieraquizada para estender à totalidade do espaço a mesma instável e dispersiva importância. É um inventário, certamente mais íntimo do que metódico, de muitas figuras e coisas que circulam em pinturas e objectos anteriores. “Uma espécie de cesto de papéis de uma memória visual des-ordenadamente recuperada”, chamou-lhe José Luís Porfírio (“Expresso”, 6-V-2000).
Já em Eclipses, as partes dos quadros anteriores imbricam-se irregularmente entre si, sem deixarem qualquer espaço intersticial, anulando assim a existência de um eventual fundo, mesmo reduzido à condição de um campo “abstracto”. Aparecem ora como fragmentos de telas pintadas ora como coisas soltas (figuras e objectos) que invadem espaços alheios e se sobrepõem a eles. Numa pintura que tem muito de “diário íntimo”, de reportagem intimista do real, como Pierre Restany já apontava em 1965, uma leitura mais atenta deveria sondar a natureza, ocasional ou mais memorialista, dos fragmentos destacados para estes dois quadros de síntese.
Entretanto, poderiam encontrar-se antecedentes mais ou menos recentes destas telas noutras obras em que foram variando os processos de associação de fragmentos, como sucede com os papéis desordenadamente flutuantes de Os Mal Educados, 1994, e o “puzzle” geometricamente organizado em 24 partes iguais de 24 Horas, de 1995, ou como a agregação anárquica de Indiana Jones, de 1996, e a dispersão estilhaçada de Histórias de Família, e Festas, ambos de 1998. RB diz que há ainda caminho a fazer nesse processo de colagem-fusão de imagens a que chegou em Eclipses: “Queria conseguir a mesma coisa sem divisões tão fortes; não é nada fácil, mas podia ir lentamente diluindo e anular esse corte” entre coisas ou partes de pinturas. “Vou experimentar”.
QUATRO dos quadros organizam-se pela divisão de cada tela (de 2 por 2 metros, sempre) em quadrados iguais: O Maestro e a Cantora, O Visitante discreto, A Queda e Conversa orientada. E o já referido O que vê ela? é construído em seis partes iguais, divididas por dois níveis ou andares. São fórmulas construtivas muito frequentes na pintura de RB, já que a compartimentação da tela em episódios, repetidos ou em sequência, foi uma estrutura de composição que se substituiu às acumulações e espalhamentos iniciais, quando o pintor regressou à pintura após os anos de construção de objectos móveis, os chamados “modelos reduzidos”.
Foi uma fórmula usada sistematicamente nos anos 70 e 80, primeiro em espaços isolados por margens brancas, depois sem intervalos entre eles, e que parecia muito próxima da banda desenhada, como se RB cedesse à lógica da figuração narrativa que antes rejeitara ruidosamente. Não foi o que aconteceu. Essas sequências de espaços compartimentados já estavam presentes em pinturas muito anteriores, associadas a inventários, alinhamentos ou sequenciações de objectos e de imagens. Depois, nunca é uma acção linearmente temporal que acontece entre os vários espaços do quadro, nem mesmo se sabe onde começa, em que sentido avança e onde acaba cada série. Na superfície compartimentada acontece a duração de um tempo, mas ela é sempre mais mudança enigmática do que sequência ordenada ou causal. Repetição, multiplicação, movimento e mudança não falam de uma história começada antes e a continuar fora do quadro.
A compartimentação do quadro em 2, 3, 4, 6 ou 8 partes subsiste como regra praticamente sem concorrência até 1994 (com a excepção possível de um quadro isolado, À Moda Antiga, de 1987), passando a partir daí a ser acompanhada por uma inédita diversidade de regras de composição, ou de ausência de regras, exactamente a partir da viragem no trabalho de RB proporcionada pela experiência das “quadricromias” e depois pelo uso do computador. Com estes novos meios mecânicos ampliam-se os recursos da pintura de RB, no que talvez se possa designar como o início do seu “período tardio”.
EM TRÊS dos quadros (mais o quadro-síntese final) aparece um personagem masculino que é visto de costas em primeiro plano, com uma torsão da cabeça que deixa ver lateralmente a face recoberta por uma máscara, com um nariz avantajado. René Bertholo reconhece-se nesse personagem, aceitando que se trata de uma auto-representação, embora não pretenda ser um auto-retrato.
A busca nos catálogos anteriores parece situar a mais antiga aparição dessa figura em Qui chasse qui?, de 1989, que aí é vista sucessivamente com e sem máscara, mas já com o mesmo arco na mão que se encontra também em O Visitante discreto e Carta da Holanda. Essa máscara-rosto também surgiu em Idolos não identificados, 1990, numa das projecções cinematográficas de dois rostos (Elna e René!, percebe-se agora…) feitas sobre dois ecrãs de cinema, instalados na superfície de um estranho universo lunar, árido e inóspito.
O Visitante discreto entra numa casa que já se conhece de anteriores pinturas, e de esculturas também. É o regresso a um espaço interior desabitado, de corredores labirínticos e portas sombrias, povoado por insólitas peças soltas mais ou menos articuláveis - “coisas recortadas em madeira, partes de uma escultura, penso eu” (RB). Já se vira essa casa antes num acrílico sobre papel de 1979, On m’avait bien dit…, retomado em Bem me tinham dito, um óleo de 1990, e depois em O Quarto da torre, de 1994. Mais anteriores eram ainda O Inquilino da torre e Os Quartos da torre, esculturas de 1976, em papier maché embebido em resina sintética.
RB já referira antes que se trata da “torre de marfim” invocada nos debates artístico-políticos lisboetas dos anos 50: o fantasma com que a esquerda jdanovista condenava o desvio abstraccionista ou o isolamento subjectivista dos artistas face aos problemas do país e do povo, à época das suas primeiras aparições enquanto jovem artista. No quadro actual, há núvens de um gás verde (pestilento?) que atravessam o cenário e o personagem que avança tem na mão um pau que se encurva como um arco, voltado contra si mesmo.
Conversa orientada é a sequência de um diálogo entre dois personagens mascarados iguais - de RB consigo mesmo, portanto -, temporalmente marcada pelo crescimento dos narizes das duas figuras, o que terá de ver-se como a referência a um Pinóquio mentiroso. As duas figuras olham-se nos olhos, mas o cenário a que fazem frente é o do quadro Álamo, de 1980 (colecção do CAM), que é por sua vez uma referência directa ao Algarve, lugar de férias de um tempo já pouco anterior ao abandono de Paris e à fixação definitiva do pintor em Portugal. Estranhas construções ou máquinas ocupam o espaço de um terraço, enquanto uma representação esquemática do sol cresce e se multiplica. É um sol que lembra a antiga bandeira do Japão, ou “também podia ser o sol durante o eclipse, ou um olho: a iris tem imensas cores vista de muito próximo. Mas quando faço isso, em geral, não penso.” (RB).
Em A Queda, um mesmo rosto de mulher, sempre surpreendido num movimento de torsão, mais ou menos vagamente recordando as feições de Elna, destaca-se sobre a superfície ondulante e inclinada de um telhado rústico, ao lado de uma planta ascendente de folhas largas. Não será abusivo reconhecer a casa argarvia já vista em muitos quadros e recordar a Árvore da vida / Coluna sem fim, dos quadros de 1994. Entretanto tomba um estilhaço de vidro (um fragmento de plexiglas, um papel vegetal?). Como uma ameaça, como um receio.
Terá a oportunidade da retrospectiva de RB em Serralves, que estas dez telas precederam ou acompanharam, e a que sucederam, sempre lentamente pintadas, conferido um sentido mais memorialista a estes quadros, ou acentuado um carácer de auto-interrogação sobre si mesmo, a sua vida e a sua obra? O autor não considera que a retrospectiva lhe tenha recordado aspectos eventualmente esquecidos do seu trabalho, tanto mais que, desde sempre, a retoma de temas e imagens das suas obras anteriores faz parte do seu método de trabalho. E também não atribui a estes quadros uma dimensão mais auto-biográfica do que a que sempre esteve presente no seu trabalho (“resolvi começar a falar de mim próprio sem palavras, e, no fundo a minha pintura é isso”, já ele tinha dito em 1984, a propósito da sua nova figuração dos anos 60). Mas depois de pintados os quadros ficam entregues à imaginação dos espectadores…
DOIS quadros mais, por fim, podem ser vistos como renovados desafios na obra de RB, retomando elementos anteriores e acrescentando-lhes outros.
Em Carta da Holanda assiste-se ao aparecimento de um elemento iconográfico inédito, as túlipas que justificam directamente o título. As colunas viajam de outras telas, mas nunca teriam assim servido para emoldurar o espaço central do quadro, enquanto os vasos das flores entram na tela pelo bordo inferior, num mesmo primeiro plano que fica dentro e fora do quadro, tal como acontece em Conversa orientada. A área maior e central do quadro é o grande fundo recortado que é resultado de um jogo de agregação de formas abstractas, sobre o qual se projecta a sombra do já conhecido personagem com o arco.
“Recortei tudo o que fosse objecto reconhecível, voluntariamente, porque me apetecia ter ali um fundo abstracto em oposição às flores do primeiro plano. A ideia do personagem veio-me mais tarde, talvez porque parecia de menos, faltava qualquer coisa. (…) O que é engraçado é que não sei porque é que voluntariamente pus o arco ao contrário. Nesta sombra ele não está virado como normalmente deveria estar, está ao contrário, não sei bem porquê. Devem ser intenções pacifistas… talvez. Mas então não era preciso o arco. Estará virado contra ele próprio? É provável que seja isso… É um gajo que se tortura a ele próprio. Não está muito longe da minha maneira de ser… Sou um tipo relativamente crítico em relação a mim próprio.”
Em Segredos, o quadro organiza-se com uma sucessão de quatro prateleiras em trompe l’oeil onde se apoiam pequenos quadros ou partes recortadas de quadros já vistos noutras ocasiões (lá está a estreita igreja de Alhandra, memória de infância) e também uma série de insólitas formas escultóricas: “Essas caixinhas são muito antigas, estão pela primeira vez numa litografia de uma exposição na galeria Krugier em Genève (exp. “Rencontres”, 1964). No catálogo tinha uma litografia original em duas páginas. Volta e meia, por uma razão ou por outra ponho-me a mexer em coisas antigas e de repente caio numa imagem que me fascina e pego nela… Foi o que aconteceu com estas caixinhas. São elementos que se podem considerar como abstractos, mas no fundo, continua a ser a minha ideia base de juntar elementos reconhecíveis e não reconhecíveis. Continuo a ter necessidade – até voluntariamente, e por ironia também - de dizer que tudo é figurativo e tudo é abstracto, não tem importância.”
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