"A máquina de pintar"
Expresso Cartaz 14 11 98
A «quadricomia» e o computador ao serviço da mão que conta a imaginação, a memória e o sonho
RENÉ BERTHOLO
Galeria Fernando Santos, Porto (até 5 de Dezembro)
«O Diabo, a Paraquedista, Etc», 1997
RENÉ BERTHOLO expõe com intervalos de dois ou três anos, mantendo uma média de produção anual de apenas seis novos quadros. Os quinze que agora apresenta no Porto, depois de já terem sido mostrados em estreia em Cascais, apenas por poucos dias, foram realizados entre 1996 e 1998. Ele não é uma máquina de pintar, como se poderá dizer de outros artistas. A sua obra é rara, muito lenta e, à primeira vista, aparenta ser quase invariável, sem que nela se possa distinguir o aparecimento de novas séries, pelo menos desde os inícios dos anos 80. Ou seja, depois das «Mirages», retratos de mulheres imaginárias, dos «Quartos de Dormir» e «Légendes», que não foram regularmente expostos em Portugal – anuncia-se agora uma mostra antológica no Museu de Serralves para o ano 2000 ou 2001.
A pintura de René Bertholo, poderia constituir, apenas (?), a lenta exploração de um universo pessoal estabilizado, um estilo, com os seus temas recorrentes, povoado por figuras ou objectos invariáveis (alguns reconhecíveis e outros não identificáveis, «abstractos»). Uma observação mais atenta, que será recompensada pelo prazer com que se vivem as descobertas e por uma sempre crescente cumplicidade, notará, porém, que tudo na pintura de René Bertholo está permanentemente em mudança: no modo de aplicar a pincelada e a cor; de construir o espaço, a profundidade da tela e o peso das figuras; de inserir os personagens e objectos em situações cenográficas ou de os deixar pairar num ambiente pictural indefinido, espalhados no plano flutuante da tela; de retomar anteriores elementos figurativos, redefinindo-os ou fazendo variar as suas associações com outros sinais; de alterar a escala desses mesmos elementos, antes miniaturais e agora fazendo-os crescer cada vez mais; de dividir o quadro em duas, três, quatro ou mais superfícies sucessivas, quase repetidas ou com maiores variantes entre si, dispostas lateralmente, em sobreposição ou em diagonal, como sucede na BD, ou, pelo contrário, de unificar a composição numa «janela» única, mas ora dispersando as figuras («all-over») por toda a superfície, ora, mais recentemente, aceitando que elas ocupem um lugar centralizado; de inventar as diferentes configurações narrativas e imaginárias que vão acompanhando na pintura as mudanças da sua vida pessoal, como um fundo temático tão efabulatório como cifradamente auto-biográfico; etc.
A exposição anterior na galeria Fernando Santos, em 1995 – trazida no ano seguinte ao Palácio Galveias, com mais alguns novos quadros –, chamou-se «Quadricomias». O título identificava a adopção de um modo de trabalho idêntico ao processo tipográfico de impressão mecânica por selecção de cores. René Bertholo passara a usar apenas o azul cobalto, o amarelo cadmium, o vermelhão e um cinzento quase preto, aplicando cada cor em toda a superfície do quadro, por ordem e separadamente, mediante sobreposições e velaturas, embora o resultado final não se distinguisse facilmente de um colorido «realista» construído da maneira tradicional.
Nos quadros mais recentes esse modo de trabalho passou a ser imediatamente reconhecível, através de uma aparência geral de artificialidade cromática ou graças a vastas áreas onde apenas foi usada a cor azul, ou só o azul e o vermelho, por vezes sem se sobreporem. Uma cor predominantemente mais fria, quase metálica, às vezes com a luminosidade do neon e um estranho brilho algo desvanecido, ou nocturno, tornou-se mais constante nas últimas pinturas. Notar-se-á, porém, que esse aparecer de um colorido mecanizado vem coincidir, paradoxalmente, com a ausência praticamente total de zonas de cor lisa, passando agora a pincelada, a modelação do volume e a sombra a serem mais visíveis do que antes. E porque o que surge como novidade no trabalho de René Bertholo já teve quase sempre um qualquer precedente ou prenúncio na sua obra, recorde-se que numa tela de 77, Jeux sans Issue, ele já usara apenas o azul e que outra, de 92, Um Cheirinho do Nuno, era praticamente uma «grisaille».
René Bertholo descobriu, entretanto, o computador como um novo instrumento de trabalho para o pintor. Num caso, o quadro Conheço-os, de 98, em que retomou um pequeno desenho a tinta da china de 87 (reproduzido num catálogo da galeria Ana Isabel, de 88), deixou mesmo indicado o cursor num quadrado que ocupa o canto inferior direito da tela.
Usando um scanner e uma normal impressora de formato A4, Bertholo passou a dispor mais livremente dos seus estudos e desenhos, e também de toda a obra anterior, como uma imensa base de dados facilmente acessível, que lhe permite fazer de outro modo o que sempre fez: partir de uma coisa já feita (um desenho, um elemento de um quadro anterior) para uma nova pintura, alterando-a, remontando-a fragmentando-a ou multiplicando-a. As suas imagens, que antes circulavam de quadro em quadro graças ao papel vegetal, são agora escolhidas e recompostas no ecrã do computador, onde também pode fazer estudos de cor e produzir as ampliações necessárias à transposição para o maior formato da tela.
Será curioso considerar que algo do seu actual trabalho de pintura (através da «quadricomia» e do computador) se encontrou com o interesse que sempre teve pelas máquinas, presente nos objectos motorizados dos anos 66-75 (os «modelos reduzidos») e na interminável construção do sintetizador programável com que se dedica à sua «mozika». Mas também se pode observar que, no momento actual da evolução da sua obra, a «mecanização» não é mais do que um novo meio ao serviço de uma pintura que põe em jogo todos os poderes da imaginação, da memória e do sonho, e que continua a afirmar-se plenamente como um exercício soberano da mão – ainda não existe a máquina de pintar, e certamente não serviria para nada. Aliás, o tratamento «mecanizado» da cor e do imenso fundo pessoal de imagens já criadas parece ter vindo acentuar ainda mais a estranheza quase surreal que é própria da pintura de Bertholo.
Com os novos processos de trabalho, René Bertholo pode mergulhar mais profundamente em toda a sua obra anterior, retomando elementos figurativos dispersos desde os quadros mais antigos e reciclando-os de diferentes maneiras, o que não é nunca uma prática repetitiva mas um modo de os interrogar diferentemente e de se interrogar a si mesmo e à sua pintura. Talvez por isso, há uma maior energia e uma renovada frescura a marcar as telas recentes como uma maturidade tardia e um dos momentos mais altos de toda a sua já longa carreira.
Em Sem Sombra de Dúvida, um quadro onde um rosto de mulher se repete seis vezes, com uma escala que é possivelmente inédita no seu trabalho, aparecem pequenos personagens flutuantes que são directamente repescados de L'Idéal, de 66. Em Malabarismos e em O Diabo, a Paraquedista, Etc regressa, ampliada, uma minúscula figura de mulher com uma chapa de plástico ou plexiglas nas mãos e uma espécie de barra que lhe prende os braços, que aparecia em Une Vie de Secrétaire, também de 66 (foram ambos reproduzidos no nº 4 da revista «Tabacaria»). Também em Malabarismos, o personagem que caminha e dá cambalhotas – é uma auto-represetação – já surgia no tríptico Notas Biográficas, de 94, e num desenho sem data («O "dançarino" em quatro posições») do catálogo «Quatro Pintores do Levante», do mesmo ano. Antes, aparecera isolado em minúsculos quadros dentro do quadro O Arraial, de 89 – e para cada localização poderá haver certamente outros e anteriores exemplos ignorados.
Entretanto, também todas as estruturas de composição já usadas são simultaneamente convocadas no trabalho actual, em quadros sequenciados, «espalhados», amalgamados como colagens ou, pela primeira vez, centrados numa figura, como sucede com A Heroína, a partir de E o Capuchinho Vermelho?, de 94, enquanto em Oh Céu de Agosto quatro rostos são colocados nos cantos do quadro envolvendo, numa inédita construção espacial, a densa área central de céu iluminado ou de pintura.
Entre continuidade e renovação, René Bertholo faz uma das mais originais e apaixonantes obras do presente, estando desde o princípio dos anos 60 na primeira linha, mas sempre à distância das manobras que ocupam os lugares mais visíveis.
I have this original "Oh Céu de Agosto" by Bertholo!
Posted by: Julio Pestana | 08/16/2016 at 00:33