2008/2010
Ricardo Angélico «Tlön para Principiantes - Uma História Natural» na Galeria Ara, em 2003
Expresso Actual 12-07-2003
"Matéria viva"
Uma pintura com força para voltar a perturbar
Depois de retratados (na série de pinturas mostradas no Centro Cultural de Cascais, em Maio), os monstros passaram à mesa de dissecção. Os despojos, carnes e vísceras sanguinolentas, que agora vemos sob o título «Tlön para Principiantes - Uma História Natural», podiam bem ser os registos do exame anatómico (anatomopatológico) daquelas estranhas criaturas que surgiam com pretextos cinematográficos, literários e de imaginação, sem deles serem a ilustração. Um mesmo gosto pelo inventário, pela ficção e as imagens de uma enciclopédia fantástica e pelas fronteiras do terror, investigadas com humor mais ou menos cruel, associa as duas séries, como se se tratasse, para o observador que as viu em sequência, do exterior e interior das mesmas criaturas. Mas outros rostos e vultos disformes também já se tinham visto («Mais Retratos de Dorian Gray», por exemplo) desde a individual de 1999 que revelara o trabalho deste jovem pintor «dos anos 90», que nasceu em 1973, em Angola, se formou na Escola do Porto e foi aluno de Batarda.
Se a deformação das figuras (deformação expressiva e/ou expressionista) foi um dos caminhos seguidos por muita arte moderna, contornando ou não as tentações da caricatura, Ricardo Angélico parece querer interrogar esse desvio afinal exigido como norma passando para lá da fronteira da normalidade recuperável. Ao deformar radicalmente as suas figuras torna-as mais do que monstruosas, são verdadeiros monstros, e disseca-as depois com imaginários cuidados de ilustração médica. De certo modo, dir-se-ia que subverte a arbitrariedade formal da pintura moderna e, sobre a experiência histórica desse passado recente, volta com ironia a fazer pintura antiga, adoptando, enquanto ficção pictural, a rigorosa observação (do disforme) como atitude primeira do artista.
Antiga, esta pintura não é feita para ficar bem na fotografia (quase tudo a que hoje se chama pintura faz-se de modo a ser visto em reproduções e devia designar-se como «estudo para fotografia», invertendo os primeiros usos da imagem fotográfica). O que se vê, surgindo dos fundos escuros, os monstros, ou agora nas mesas sujas do exame anatómico, acontece com a (como) matéria pictural, constrói-se com pastas informes, antes e depois de ser uma imagem, e divisa-se lentamente ao mover-se o observador frente ao quadro, sob a luz reflectida pelo óleo. Contra a facilidade ambiente, mais mediática, R.A. faz da pintura um exercício resolutamente destituído de amabilidade e certamente também por isso pinta monstros e vísceras. Se tais figuras parecem agressivamente estranhas é porque à pintura se foi proibindo que incomodasse, como acontecia com martírios e infernos, com as carnes profanas de Rembrandt e Soutine, com as matérias apenas (tintas escorridas ou lamas informes) de Pollock e Dubuffet. E também com Bacon e Freud, referências incontornáveis na passagem do século. Juntem-se a ficção de Borges, que o título refere, fontes eruditas (Leonardo, etc.) e clássicos da ilustração médica (Vesalius), e temos um muito amplo universo de referências a adensar esta pintura culta que vem perturbar o que chamamos arte contemporânea. (até dia 25)
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.