TEMPO DE FANTASMAS
Expresso Revista, 23 Julho 1994, pp. 60-63
UMA EXPOSIÇÃO DE FERNANDO LEMOS NO CENTRO DE ARTE MODERNA VEM DAR A DEVIDA PROJECÇÃO A UMA AVENTURA FOTOGRÁFICA DE TRÊS ANOS SURREALISTAS
A intimidade dos armazéns do Chiado
«FERNANDO LEMOS-52 foi a mais escandalosa exposição que Lisboa viu, depois que Amadeo aqui expusera em 16, e certamente com mais impacto do que a exposição do Grupo Surrealista, três anos antes, ou a de António Pedro-Dacosta-Boden em 40» - foi José-Augusto França quem o escreveu, em 1973, com a urgência do folhetinista (no «Diário de Lisboa», in Quinhentos Folhetins I, lN-CM, pág. 238), a cumplicidade do amigo e a autoridade de historiador. Nesse ano de 1952, de 5 a 15 de Janeiro, Fernando Lemos expunha na Casa Jalco, da Rua Ivens, 55 fotografias e mais outros 71 trabalhos, entre óleos, guaches e desenhos, numa tripla exposição individual, com Fernando Azevedo e Vespeira. Em Dezembro do mesmo ano, na Galeria de Março que, entretanto, Lemos e J.-A. França tinham fundado, voltou a mostrar «Fotografia de várias coisas».
Em 1953 partiu para o Brasil, acompanhando a representação portuguesa à Bienal de São Paulo, de que fazia parte, e também publicou Teclado Universal, que ficou a ser o último dos «Cadernos de Poesia». Já em 1954 (ou ainda em 53, segundo incertas cronologias) voltou a expor as mesmas fotografias nos Museus de Arte Modema de São Paulo e do Rio de Janeiro, aqui sendo apresentado por Manuel Bandeira.
As provas originais de 1949 a 1952 perderam-se nas muitas voltas do exílio, e não foram nunca objecto de uma sistemática procura. São as reimpressões dos mesmos negativos 6x6, restaurados e tirados em grande formato (negativo integral) por Yvon Le Marlec, em Paris, que se exibem no Centro de Arte Moderna, em exposição comissariada por Jorge Molder e com dedicatória a outro impressor, Mário de Almeida Camilo, dos antigos Armazéns do Chiado, que ensinou a Lemos o pouco que aprendeu no laboratório fotográfico e lhe fixou duradouramente os seus trabalhos de amador.
Um simultâneo livro-catálogo ficará como a edição definitiva de uma obra mítica da fotografia portuguesa: retratos, composições e nus realizados por um fotógrafo meteórico, poeta, pintor, desenhador, gráfico e, mais tarde, também «designer», jornalista, conselheiro e técnico de museus, comissário de exposições, activista político, etc. Para além da sua originalidade fotográfica, essas imagens constituem uma galeria única de retratos de escritores, artistas e actores de teatro, que é memória rara de um «tempo de fantasmas» (título de Alexandre Q'Neill, 1951), uma afirmação de dignidade e de inteligência única num dos períodos de mais feroz repressão do anterior regime: aí estão Jorge de Sena, Casais Monteiro, António Pedro, Mécia de Sena, Alice Gomes, Vieira da Silva e Arpad, Sophia, Blanc de Portugal, Alberto Lacerda, Mário Cesariny, J.-A. França, Cardoso Pires, Vespeira, Azevedo, O'Neill, Costa Pinheiro, Carlos Wallenstein, Augusto de Figueiredo, Glicínia Quartim, José Viana e tantos outros.
Fernando Lemos praticou a fotografia no quadro de uma intervenção artística experimentada em simultâneo em vários «media», mas teve então imediato êxito como retratista, em especial nos meios do teatro. Muitos dos seus originais tiveram larga circulação e foram até editados em postais, perdendo-se o rasto de alguns negativos (foi o que sucedeu com os retratos de Rogério Paulo, Canto e Castro, Fernando Gusmão - e o de Almada também desapareceu). Segundo recorda agora o autor, não lhe importava tanto «a intenção de fazer fotografia artística», como «uma maneira afectiva de fazer o meu trabalho de artista com os amigos» e uma prática convivial «determinada pelo próprio quotidiano dos meios culturais da Oposição».
A perspectiva da profissionalização foi então recusada ("não me quis prender à fotografia, era uma armadilha»), e Lemos também se lembra que as suas imagens motivaram entusiásticos projectos de cinema por parte de António Pedro e de Almada Negreiros, em concorrência entre ambos. Só voltaria, no entanto, a usar a fotografia como suporte técnico do trabalho de "designer", embora afirme ainda hoje que ela «é a única arte realmente moderna, porque lida com o contemporâneo - a imagem fotográfica é o próprio registo do objecto, é o gesto artístico e é já uma forma de pensamento».
No Brasil, Lemos prosseguiu uma obra de pintor e desenhador, com presença na Bienal de São Paulo de 1955 já integrado na representação brasileira, premiado na edição de 1957 ("melhor desenhista brasileiro»), com a homenagem de uma sala especial em 1965, e fez muitas outras exposições até ao presente, sem ser, ou querer ser, um artista de produção regular: «Não sou homem de grandes quantidades, nem tenho uma obra muito grande - tenho medo disso e nunca quis ser obrigado a compromissos.»
Em Portugal, que não visitou até ao 25 de Abril, expôs desenhos em 1954, na Galeria de Março, concorreu à II Exposição Gulbenkian, em 1961, mostrou pintura numa individual em 1973 (os «Signos desconstruídos», nas colecções SEC e FG) e apresentou novos desenhos, experimentais e memorialísticos, feitos sobre chapas de alumínio, na Fundação Gulbenkian em 1985.
Em 1982, as fotografias de Fernando Lemos emergiram do esquecimento na retrospectiva dos «Anos 40» e foram mostradas na Sociedade Nacional de Belas Artes, numa exposição intitulada «Refotos Anos 40» que passou quase despercebida - as mesmas provas, executadas nos Estúdios Novaes e entretanto restauradas, estão também expostas no CAM. Muito mais tarde, já em 1992, uma nova selecção foi apresentada em Paris, no Centro Cultural Português da Fundação Gulbenkian, no quadro do «Mois de la Photo», mas perdendo-se por falta de uma edição condigna o possivel impacto da mostra, e as referidas provas editadas em 82 integraram a exposição «Arte Portuguesa nos Anos 50", em Beja e Lisboa, onde figuraram também os fotógrafos Sena da Silva e Victor Palla/ Costa Martins.
AVENTURA SURREALISTA
Segundo J.-A. França, de novo, «Lemos é, sem dúvida, a maior força criadora da sua geração - para além de desistências, de amarguras, de habilidades, de comercialismos» (in Quinhentos Folhetins). Jorge de Sena propusera, entretanto, uma outra pista para situar a originalidade do artista e do poeta, tal como também o foram Almada e António Pedro, numa mesma linhagem das «iniciativas individuais ou esporádicas» que fizeram o modernismo português: O «que se interpõe entre A. Pedro e F. Lemos [é] uma transição decisiva, de que poucos artistas se apercebem em Portugal, na sua arte, conquanto julgassem realizá-la na sua vida: a profissionalização, ou melhor, a extinção dos ideais românticos do artista como ser excepcional, e cuja excepcionalidade lhe conferia, a par de uma missão superior, alvará de irresponsável. ( ... ) Na primeira metade do séc. XX, não há ainda artistas 'profissionais', o que não quer dizer que muitos não tenham vivido da arte, e que, como artesãos, não tenham adquirido uma consciência experimental e prática da sua própria expressão. Mas não é o mesmo ser-se um aristocrático diletante que consegue encomendas, ou pode pintar mesmo que as não tenha, e ser-se um profissional que é obrigado, pela profissão que escolheu, a trabalhar nela e por ela. O que terminou, na segunda metade do séc. XX, é a expressão artística como apanágio do 'filho-família', com a chegada, à cultura ou à criação dela, de elementos oriundos de outras camadas populacionais» (prefácio da reedição de Teclado Universal, Morais, 1963, incluído em Cá & Lá, IN-CM, 1984; sublinhado do autor).
Nascido em Lisboa em 1926, Fernando Lemos - que teve origem proletária, ganhou a vida desde criança e frequentava à noite a Escola António Arroio - trabalhava como litógrafo, retocador de fotolitos, desenhador de rótulos, quando descobriu a aventura surrealista na 1" exposição de 1949. É então que compra a primeira máquina, uma Flexaret, não automática, e, sem particular formação técnica nem contacto com outros fotógrafos, se entrega a experiências próximas da escrita automática, das colagens e ocultações gráficas e do «cadáver esquisito», como manifestações de um imaginário aberto às forças do inconsciente e do acaso, embora Lemos acentue sempre o carácter programado e consciente das suas «refotos».
Grande parte das suas imagens, incluindo os retratos e nus, foram realizadas por sobreposição voluntária de disparos sobre a mesma película: «A tomada de duas ou mais imagens propositadas num mesmo espaço de filme virgem elabora, por um sistema de anulação ou acréscimos cadenciados, a descoberta de novas texturas e organismos fornecidos pela luz, que é a matéría prima da fotografia" (F.L., 1982, catálogo). «A margem de acaso é mínima, uma vez controlada a Asa, a posição em relação ao campo visual, o diafragma, etc. Assim se procurou dar à cxperiência um cunho de plasticidade mais pictórica e descomprometida com a técnica fotográfica legislada pela máquina» (idem).
A intervenção laboratorial era nula ou muito limitada, até por insuficiências de formação técnica, e Lemos não procedia à sobreposição de negativos, ao contrário de Man Ray, mas a prática dos reenquadramentos era-lhe frequente (e também por isso se lamenta a ausência de provas de época) - a impressão de múltiplas imagens no mesmo negativo «permitia obter várias dezenas de opções para imprimir copias ampliadas de detalhes que se tornavam entidades». Imagens insólitas e provocantes, associações semânticas, sobreposições de sinais e formas abstractas, efeitos acrescidos de textura, velaturas e transparências.
Entretanto, os seus retratos encenados tiram partido de uma relação de grande cumplicidade com os modelos e constroem-se em exercícios de evidente representação, entre o real e o imaginário, que os enquadramentos, os efeitos de moldura e a fragmentação do espaço sempre sublinham, tal como a afirmada presença poética da luz ("com uma lâmpada única, como o sol, que só tem uma projecção»), num jogo de aparições e de ocultações parciais dos rostos e dos olhos - «A sombra da luz» é o título desta retrospectiva.
A fotografia portuguesa fazia-se então nos salões, com o inspector Rosa Casaco, João da Costa Leite ou Tavares da Fonseca, e também no estúdio de Mestre San Payo e nos clubes como o Grupo Câmara, em Coimbra, com João Martins. Alguns arquitectos expunham nas Exposições Gerais da SNBA e Ernesto de Sousa ensaiava um particular neo-realismo fotográfico. Só por meados dos anos 50, Victor Palla e Costa Martins, Sena da Silva, Gérard Cestello Lopes, Carlos Calvet, Carlos Afonso Dias definiriam uma colectiva situação de ruptura, também quase clandestina, da qual nasceu a possível modernidade de um novo olhar sobre o país. Será necessário fazer, um dia. uma revisão global dessas imagens. Entretanto, Fernando Lemos é um brevíssimo mas essencial momento dessa história e as suas imagens continuam a ter a força de uma surpresa. •
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