Expresso Revista de 06-02-99
"A alegria e o mistério"
Retrospectiva dos 25 anos de trabalho de um fotógrafo dividido entre a Holanda e o Alentejo. Um mestre em plena actividade
JOSÉ MANUEL RODRIGUES
Culturgest/CGD (Até 21 de Março)
SÃO 25 anos de trajecto que a exposição mostra («carreira é mais para transportes públicos», diz o fotógrafo), na condição paradoxal de ser ao mesmo tempo a retrospectiva de uma obra muito extensa e também uma revelação, pelo menos para o público de Lisboa. Aquela longa continuidade de trabalho somada a uma prática actual em plena pujança criativa é muito pouco frequente na fotografia portuguesa. Associando a extensão à variedade dos caminhos e à excelência com que os percorre, José Manuel Rodrigues impõe-se hoje como um mestre; o termo deixou de ter uso fácil, mas já pode ser recuperado para classificar a individualidade exemplar de um percurso criativo onde a multiplicidade dos temas e das práticas se instituiu numa identidade profunda, que sobre a diferença das coisas vistas se revela ou oferece como um sujeito autoral.
A essa posição de mestre reconhece-se uma iluminação própria do mundo («não tenho só fotografado a luz reflectida, também tenho fotografado a minha própria luz», escreveu o artista) e um relacionamento muito fundo com toda uma genealogia de mestres anteriores, o que é igualmente raríssimo na fotografia portuguesa, quase sempre mais feita de breves lampejos do que de cultura fotográfica.
Os seus vinte anos de emigração e quatro-cinco de Alentejo estiveram muito longe de serem secretos, mas serão pouco conhecidos, até porque J.M.R., que é um profissional da fotografia (e um «fotógrafo que usa a arte»), sempre se aplicou mais em viver e trabalhar do que em seduzir os circuitos da fama. De facto, teve imediata projecção uma primeira exposição que em 1981 trouxe da Holanda ao Museu de Évora. Como conta Jorge Calado num «Segmento biográfico» do catálogo dedicado ao romance da sua vida, uma passagem pelos Encontros de Coimbra, então na segunda edição, proporcionou um encontro ocasional com Paulo Nozolino e foi este que sugeriu a António Sena a deslocação a Évora, anunciada num relato atento e emocionado do «Jornal de Letras», onde falava de «uma visão intimista, criadora de laços de afecto». Vivia-se por essa altura um tempo de recomeço da fotografia portuguesa, ainda fraterno, feito de novos olhares e da recuperação de memórias.
A frase que abre agora a retrospectiva numa parede da Culturgest é a mesma que José Rodrigues escreveu no catálogo pobremente editado em Évora: «As minhas fotografias não têm uma mensagem particular, são momentos da nossa vida quotidiana. Não quero prender-me a estilos ou direcções. Fotografo uma pedra com o mesmo prazer com que faço um retrato. É o mistério das coisas e a vida das pessoas que me seduz». Não é necessário mudar uma vírgula para «explicar» o que se expõe agora sob o título «Ofertório», nem aquele mistério é um segredo, ou mensagem, que se deva desvendar. E é de um trajecto por visões precárias oferecidas à eternidade, e não de um estilo, que as fotografias são as marcas vivas.
A Évora seguiu-se uma individual nos 3ºs Encontros, em 1982, e outras em Setúbal e no Porto, no ano seguinte, quando trouxe a Coimbra uma colectiva holandesa que esteve na origem da repetida circulação de Paul den Hollander. Depois a ausência, até uma fugaz participação no Fotoporto de 1988, à presença na selecção oficial da Europália, em 1991, que não se viu em Portugal, e na primeira revisão histórica da fotografia nacional, muito discretamente organizada também por A. Sena, em 92 («Olho por Olho», Ether).
A partir de 93, José M. Rodrigues regressa do exílio, sem passar por Lisboa, e torna-se, com a mesma discrição de sempre, uma presença constante: nos Encontros de Coimbra desse ano e até 96, em mostras individuais sempre periféricas (Montemor-o-Novo, Caldas da Rainha, Évora, São João da Madeira, Algés e, mais distantes ainda, Aldeia da Venda, Castro Verde, Mora, Grândola...), em projectos monográficos expostos ou editados no Porto (Alfândega Nova), Évora, Mértola, etc., incluído em colectivas como Livro de Viagem (Frankfurt e CCB) e À Prova de Água.
Antes e durante este longo itinerário, cujo crescente reconhecimento não foi o efeito de uma estratégia de projecção, nem fez deixar de ser sempre um modo de viver e o crescer de uma rede de afectos («estou a mudar a minha carreira num trajecto, carreira é mais para transportes públicos, o trajecto da vida é realmente o que me interessa», voltando a citar uma carta enviada em 1996 aos amigos), J.M. R. tem uma outra história.
Saiu de Évora e de Portugal, a salto, aos 17 anos (nasceu em 1951), passou pela Renault em Paris e descobriu o cinema, entre as aventuras da emigração. Em 1980, abreviando muito, até porque o catálogo deve ser lido, tinha concluído um seriíssimo curso de fotografia em Roterdão, participava na constituição do grupo Perspektief, que renovou a fotografia holandesa, e começava uma carreira profissional de fotógrafo de arquitectura. As suas exposições holandesas faziam com que, nos anos seguintes, fosse incluído em várias colectivas de novos fotógrafos europeus apresentadas em Boston, Los Angeles, Houston, San Diego.
A retrospectiva poderia ter apenas restabelecido o fio temporal desta obra, mas Jorge Calado entendeu a função de comissário de um modo mais dinâmico, trocando o sumário das fotografias já expostas por um inquérito exaustivo a todas as folhas de contactos deixadas por explorar. José Rodrigues foi sempre um fotógrafo com pressa de fotografar, talvez porque veja lentamente (não é um repórter) e faça das suas impressões prodígios de exactidão e densidade.
Em vez de uma simples antologia de «highlights» – não se expõem agora todas as melhores fotografias já antes publicadas, apesar de se excederem as duas centenas –, o comissário optou por dar a ver a extensão dos seus interesses e também as experiências que abrem caminhos à perfeição de outros trabalhos; pôs à prova as fronteiras e circulações entre a fotografia aplicada e aquela a que às vezes se chama arte; entendeu a condição de retrospectiva como revisão interrogativa sobre uma obra, um passo adiante de uma mostra em comprimento, e, por fim, baralhou a ordem temporal para organizar o percurso em capítulos com sentido e ritmo próprios. Confrontou ideias e formas, aproximou corpos e lugares, semeou descobertas e hipóteses que quando parecem as chaves do mistério apenas o adensam. A montagem contraria o trânsito preguiçoso, é estimulante e exigente.
Há dois espaços iniciais que quase respeitam a ordem cronológica, um com objectos de uma série de 82-83, onde a intimidade e o humor experimentavam romper as regras do médium («O Eu e o Tempo»), depois, outro com fotografias «vintages» que estabelecem desde os primeiros anos a implicação com (e entre) o retrato e a natureza, marcadas pelas atribulações da vida («Trabalho Antigo», 1972-78). O happening, a performance e a construção objectual, que têm um largo espaço nas preocupações de J.M.R., até 1987, prolongaram-se na exploração de associações por contraste e identidade que as suas exposições sempre exibiram, nas montagens em sequência, nos próprios assuntos fotográficos, o auto-retrato e os retratos íntimos das mulheres, dos filhos e dos amigos, nas encenações dos corpos na paisagem, na construção de espaços complexos e na atenção à materialidade dos objectos.
Exposições anteriores, quando não se tratou de explorar um conceito («100 metros à volta do atelier», Amsterdão, 1989) ou descobrir um lugar (Alfândega do Porto, 1995), foram concebidas pelo autor quase como retrospectivas parcelares. As provas de datas distanciadas (em geral não indicadas, tal como os lugares, ao contrário da regra adoptada nesta retrospectiva global) estabeleciam uma rede discreta de sentidos que, por exemplo, condensavam as «pequenas impressões» do trânsito entre a Holanda e o Alentejo (Montemor-o-Novo, 94); sublinhavam a implicação autobiográfica e comunitária do seu trabalho, como partilha de um domínio privado (Évora, 96); ensaiavam uma arte poética, uma meditação sobre a fotografia, onde os corpos se identificavam com a harmonia desejada da paisagem, na transposição do espaço em tempo (S. João da Madeira, 97); equacionavam o trânsito do caos à ordem, entre as coisas e a abstracção (Algés, 98), etc.
Agora mostra-se como no trabalho de J.M.R. se desvanecem as barreiras entre as disciplinas fotográficas estabelecidas, mas fazendo-lhes contribuições relevantes, como existe continuidade entre a precisão documental e a estranheza surreal da descrição, como o humor e o erotismo estão sempre presentes com uma dimensão elegíaca, como o prazer das coisas lhe alimenta a paixão de interrogar o mundo e a si próprio, ou como a extrema acuidade do ver, na rigorosa construção do equilíbrio formal e na rejeição mais radical da anedota, é a revelação da precaridade do espaço e do tempo, instaurando, como inquietação e maravilha, uma falha, o abismo do real.
Duas reportagens (Matança do porco e Hospital) são exemplos de ensaios documentais e narrativas simbólicas sobre a morte; algumas classificações disciplinares (Retratos e auto-retratos, Nus, Arquitectura) comprovam a ocupação inventiva de áreas fotográficas; outros capítulos (Actos de desaparecimento, Linhas, Muros, As pedras e os povos, Os quatro elementos) estabelecem as pistas e apontam as preocupações mais fundas do fotógrafo, mas são referências à música (abertura, Contrapontos e Coda) que balizam o percurso da exposição.
Janelas, espelhos, perspectivas, escalas, esferas, encontros ou homenagens (os outros mestres), metamorfoses, mãos, sombras, poderiam ser outros tópicos de montagem e «leitura» de um trabalho onde a sedução pelas estruturas e texturas do visível celebra uma implicação vital na fragilidade inquietante das coisas e dos corpos. Onde a poesia e a filosofia se encontram com a condição paradoxal da fotografia como conhecimento, na suspensão da informação e da interpretação. «Não devemos ter uma atitude desesperada de dar obrigatoriamente um significado às coisas» (escreveu também J.M.Rodrigues).
A retrospectiva interrompe-se em 1997. No ano seguinte, o fotógrafo publicou um trabalho sobre as Tabernas de Grândola (retratos e interiores, com textos de Alfredo Saramago e Paulino Mota Tavares), onde se acentua a riqueza do imenso inventário antropológico que tem vindo a realizar no Alentejo. Ficará a aguardar-se outra grande exposição, centrada no trabalho mais recente e futuro, desde os retratos dos poetas populares publicados em Cantadores de Alegrias, Mágoas e Mangações (Alandroal, 93), passando pela topografia, o património e os levantamentos arqueológicos. O trajecto continua.
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