Expresso Revista
12-01-1996, pp. 75-78
"Domínio privado"
Numa exposição que se apresenta no Museu de Évora, o trabalho de José Manuel Rodrigues, por muito tempo realizado na Holanda, ganha uma nova e mais exacta visibilidade. É da própria vida, dos seus afectos e acontecimentos privados, que o fotógrafo faz a sua obra
José M. Rodrigues - "Memórias do tempo"
Museu de Évora, 5 Jan. - 11 Fev. '96
(Centre Culturel Calouste Gulbenkian, Paris, 16 nov. - 20 déc. '95)
texto de Tersa Siza ("O pulsar das coisas")
Ao interrogar-se sobre qual o tema (ou temas) de um determinado
auto-retrato de Lee Friedlander, onde a sua sombra se projecta sobre um
chão de pedras e raízes, John Szarkowski chega apenas à precária
conclusão de estar perante um todo indivísível, ou uma ideia simples
que não é a mistura de diversos elementos separados. E termina assim:
«chamemos-lhe uma fotografia, um exemplo desse tipo de imagens que
tentam dar a ilusão de uma significação precisa».
Não se trata, nessa suspensão da análise, de uma fuga às dificuldades
da interpretação da fotografia, mas apenas de saber que sentido e
verdade não podem ser assimilados. Quer reconheçamos numa «prova» a
exacta aparência referencial quer uma imagem aparentemente abstracta —
por exemplo, o rosto de um desconhecido ou algum fragmento que foi
isolado do seu contexto e assim tornado irreconhecível —, a
significação oferece-se como ilusão e como tal se nega. Se não sabemos
quem é o retratado, nem quais os laços que o ligam ao fotógrafo, um
corpo é apenas um material indicial, tão directo mas também tão
in-significante como as sombras de uma «abstracção».
O reconhecimento de um objecto ou situação, a apreciação de um jogo formal ou o entendimento de um determinado conteúdo simbólico são, por si só, apenas modalidades possíveis de classificação, ou momentos de um interrompido desejo de significação. São ilusórias respostas de conveniência para uma deriva potencialmente interminável (quando as imagens motivam e suportam esse confronto), que nos levaria até à descoberta do referido todo visível e indivisível, esse não saber.
As fotografias que José M. Rodrigues expõe no Museu de Évora, e que podemos tentar classificar como retratos, paisagens, interiores e quase-abstracções, parecem todas elas querer conduzir-nos ao reconhecimento dessa distância instável entre o sentido e a verdade, entre a imagem e a significação, num processo que também nunca se resolverá através do recurso fácil à ideia de «visão subjectiva».
Exibidas sem a pista de um título nem informação de local e data (estes últimos apenas aparecem, sem acrescentarem qualquer significação precisa, nas 21 reproduções de um catálogo editado pelo Centro Gulbenkian de Paris, para um total exposto superior a 70 provas), as imagens oferecem-se ao espectador apenas sustentadas na sua própria possibilidade de suscitar a descoberta de que «as fotografias têm uma vida e uma história que lhes são próprias», como também diz Szarkovski no mesmo texto (Autoportrait, colecção «Photo Notes»).
INTIMIDADE
A referência feita aos auto-retratos de Friedlander não é acidental, porque eles também são numerosos entre as fotografias que José M. Rodrigues agora mostra, numa exposição que vem alterar radicalmente a ideia globalizante sobre a respectiva obra que se poderia ir construindo através das suas apresentações mais recentes. Exibido como paisagista em Coimbra (Encontros de 1993, onde alguém atribuiu o título «Minas de São Domingo» a imagens de diversos lugares), foi ainda a paisagem, acompanhada por alguns interiores e fragmentos arquitectónicos, que dominou nas mostras de Montemor-o-Novo e Caldas da Rainha, em 94 e 95. Pareciam ser raras as presenças humanas no trabalho de J.M.R, também ausentes de projectos de encomenda sobre a Alfândega do Porto e o Hospital de Évora, igualmente de 95.
Optando agora por associar retratos realizados por volta de 1980 e outros feitos muito recentemente, J.M.R. faz-nos descobrir mais exactamente o sentido de uma obra onde os rostos e os corpos estiveram, afinal, sempre centralmente presentes.
O pequeno texto telegráfico que escreveu para a sua primeira exposição, em 1981 e precisamente no mesmo Museu de Évora, quando já trabalhava em Amsterdão, continua a ser uma pista pertinente: «As minhas fotografias não têm uma mensagem particular, são momentos da nossa vida quotidiana. Não quero prender-me a estilos ou direcções. Fotografo uma pedra com o mesmo prazer que faço um retrato. É o mistério das coisas e a vida das pessoas que me seduz».
Nessa identificação causal das fotografias com a vida, que o levou também à experiência das «performances», as imagens são sempre peças fragmentárias de um diário, de um itinerário íntimo por afectos e acontecimentos, o qual, no entanto, nunca se dá a ver como sequência cronológica, nem se organiza como retrospectiva, mas antes se revisita e actualiza no presente.
Retratos ou objectos são sempre elementos de um mesmo «puzzle» que é a experiência vivida do mundo à sua volta, uma experiência que é privada e pode ser partilhada (os amigos, a família, os lugares habitados, as viagens), e que ensaia a resistência da sua sensualidade própria nas condições da «exposição» e informação públicas — para uma mostra individual na Holanda, J.M.R. fotografou apenas num espaço de cem metros à volta do seu atelier.
A possível celebração da subjectividade que se poderia ver nas suas fotografias é sempre, paradoxalmente, a reserva de uma radical objectividade íntima das coisas, e a identidade do visível e do invisível inscreve-se no mesmo silêncio construído da imagem. O sonho ou a irrealidade vistos são também o real mais próximo e quotidiano — e não o «para lá do real», o fantástico ou o mistério das «visões» interiores.
AUTO-RETRATOS
A fotografia que abre a exposição considerar-se-á como um primeiro auto-retrato se se notar a ténue sombra do corpo do fotógrafo onde começamos por ver apenas duas crianças nuas entre os rochedos de uma praia, preenchendo todo o formato quadrado da prova. Se soubermos que são (foram) os filhos do fotógrafo, o «tema» toma a intensidade perturbante de uma fotografia de família, e tudo se tornará muito mais complexo (ou mais simples?), se pudermos reconhecer os mesmos filhos, cerca de 15 anos depois, separadamente retratados, nas duas fotografias que encerram o percurso da exposição. Sobre toda esta estabelece-se assim uma irredutível privacidade de sentidos, que a dedicatória do catálogo também exprime.
Numa dessas duas últimas fotografias (São Tomé, 1995), o rosto que emerge do mar também pode ser (pelo menos para um espectador, o que escreve) a referência directa a um dos mais famosos retratos de Harry Callaham — Eleanor, 1949 —, desse modo se tornando uma homenagem a outro fotógrafo que fez das imagens familiares um dos eixos mais constantes da sua obra. Depois de Friedlander, Callaham é uma segunda referência possível entre as muitas afinidades electivas, outros afectos, que é possível surpreender nesta exposição: Minor White, Sudek, Álvarez Bravo, Siskind, Meatyard são outros fotógrafos que estão tão presentes como os entes próximos que J.M.R. fotografa. E nessa deliberada circulação de olhares, que nunca se verão como meras citações, poderiamos reconhecer um caminho exigente de interrogação sobre o que é o estilo, questão de que o fotógrafo se serve como um dos seus materiais do seu trabalho.
Outra fotografia é um auto-retrato que se reconhece num rosto quase frontal reflectido por um espelho, sendo este inscrito numa parede tornada oblíqua pela inclinação dada ao eixo da câmara, paralelo àquela superfície reflectora (uma regra de instabilização e desnaturalização do espaço usada noutras imagens). Certamente se notará, então, que na fotografia ao lado alguém é também retratado através de um espelho, mas que este é agora seguro, ou mesmo exibido, entre as mãos do modelo: é o pai do fotógrafo, fabricante de espelhos de bordos lapidados de tradição alentejana.
Para além de infindáveis interpelações sobre o espelho e a fotografia, ou sobre a cumplicidade aí instalada entre pai e filho, outra vez se sublinha que é toda uma rede de relações privadas que organiza as imagens desta exposição, uma rede de afectos e não de informações, que será certamente sensível para o espectador que vê apenas retratos de desconhecidos, percebendo a secreta intensidade das histórias que justificam cada uma das imagens, mesmo se lhe faltam os dados para a sua decifração. Esses laços de intimidade enformam o aparente não significado das imagens, sem que assegurem por si mesmo os seus valores formais e simbólicos (todos fazemos banais fotos de família).
Observe-se ainda outro dos auto-retratos, que nunca se vêem como exibição narcísica, exaltação romântica da intimidade ou teatralização do simulacro, porque o que neles se inscreve é a interrogação genérica sobre as condições de visilidade da imagem fotográfica. Aí, uma outra sombra projectada, neste caso nitidamente recortada a negro no primero plano e no centro da imagem, desenha um nítido contorno humano num marco de granito frente à profundidade da paisagem alentejana, reconhecível na sua presença emblemática: é uma das raras vezes em que J.M.R. reivindica a transparência de um lugar e inclui a linha do horizonte na composição. Se o contraste de luz e sombra bem como o jogo surpreendente das escalas asseguram, por si mesmos, o impacto forte da imagem, também poderemos admitir que neste auto-retrato se exprime toda gravidade da interrogação de um destino pessoal, quando o fotógrafo, por mais de uma década instalado na Holanda, se confronta com o seu regresso a Évora.
Mais dois outros auto-retratos, por fim, podem ser imagens de morte que se constroiem como metáforas da própria fotografia. Uma delas seria quase literal, com a sombra da cabeça que se projecta sobre a forca de uma corda, mas a presença dos restantes elementos, a água e a areia da praia em movimento, que preenchem toda uma superfície vista na horizontal, como quem se debruça numa tina de revelação, oferece-se como a dinâmica activa dos materiais da fotografia. A outra, mais «abstracta», é apenas um caos de águas revoltas que se adensa numa mancha negra quase informe, organizando-se como uma imagem fugaz e tão instável como o seu possível sentido. É à formação da própria imagem fotográfica que assistimos, num momento imobilizado que, na suspensão crepuscular dos elementos, se constitui como o próprio fazer do retrato do autor, ou como a evidência da interrogação sobre o sentido da fotografia.
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