" Se quisermos uma história da fotografia
a sério e não apenas uma história
selectiva de umas tantas fotografias
artísticas, ela vai ter de expandir as
suas fronteiras e incluir uma série de
coisas que até agora tem ignorado,
como os instantâneos. "
Há sempre quem invente outra vez a pólvora, ou surgem sempre alguns académicos a tentar vender uma originalidade qualquer que já foi inventada há muito: gato por lebre. Não percebi porque é que, com tantos temas à espera de ser tratados se deram duas páginas de um diário a uma conversa sobre instantâneos familiares anónimos amalgamados com a questão mais vasta da fotografia vernacular, que viriam sustentar uma outra história da fotografia.
"Se olharmos para a maior parte
das histórias da fotografia ficamos
a pensar que só se fizeram umas
cem fotografias porque as mesmas
obras-primas são repetidas de
livro para livro. Esse tem sido o
padrão dominante porque as mais
influentes instituições no mundo,
como o MoMA de Nova Iorque,
estabeleceram o modelo e todas as
outras quiseram emular esse modelo
– até aqui em Lisboa, calculo.
Mas acho que chegou o momento
de começar a escrever histórias
da fotografia que sejam mais
sintomáticas das especificidades
locais, histórias de alcance global,
que incluam África, Ásia ou a
América Latina. E que lidem com
os géneros que tradicionalmente
têm sido excluídos desse modelo:
fotografia comercial, industrial,
instantâneos, objectos híbridos... "
Esta conversa é mentirosa. O sr. professor devia saber que Edward Steichen (o mesmo da "Family of Man", em 1955, o mesmo que foi pictorialista na "Camera Work" da viragem dos séculos XIX-XX) apresentou no Museum of Modern Art de Nova Iorque (o MoMA que refere) uma exposição que se chamou "Fotógrafos Esquecidos" ("Forgotten Photographers"), em 1951, onde reuniu fotografias depositadas na Livraria do Congresso e realizadas para fins utilitários, comerciais, etc. Não anónimas, mas não concebidas como obras de arte.
Devia lembrar-se da exposição" The American Snapshot", organizada sem êxito em 1944 por Williard Morgan no Photographic Center, prolongamento do MoMA.
Devia lembrar-se de "The Photographer's Eye", 1964, e "Photograpy Until Now", de 1989, ambos de John Szarkowski, abordagens compreensivas e históricas da fotografia onde é grande o número de fotógrafos desconhecidos, tanto anónimos como profissionais sem notoriedade.
Como deve saber-se, a história da fotografia norte-americana, que é em muito grande parte a história investigada e apresentada pelo MoMA, resulta de um processo de tensão, competição e alternância entre tradições esteticizantes e produções vernaculares. O mesmo sucede, com dinâmicas variáveis, em termos de história geral (se tal generalização existe) e nas diferentes histórias regionais ou nacionais.
Enquanto Walker Evans adoptava um estilo pessoal oriundo do "vernacular americano bruto" (Peter Galassi), em reacção ao esteticismo da "fotografia pura", a descoberta e valorização de várias obras vernaculares alargaram o passado e as possibilidades contemporâneas da fotografia: Eugène Atget, Jacob Riis, Ernest J. Bellocq foram sendo reconhecidos como autores ou artistas.
Uma grande exposição que se chamou em França, no Centro Pompidou, PHOTOGRAPHIE AMÉRICAINE DE 1890 À 1965 a travers la Collection du Museum of Modern Art, New York (que se mostrou tb em Berlim, Amsterdão, Edimburgo, Goteborg, Valência e Londres), ocupou-se precisamente dessa "dupla história" entrecruzada, artística e vernacular, que acolhe as contribuições de inúmeros amadores e profissionais, para além da linha de fractura que a Photo Secessão estabeleceu nos Estados Unidos entre a arte dos amadores e a produção funcional e não artística.
Fique o tal "historiador" Geoffrey Batchen* com "a banalidade e o carácter repetitivo" dos seus instantâneos familiares anónimos, mas a sua pólvora vem molhada.
A coisa veio no Público de 11 de Junnho e o blog artephotographica do Sérgio B. Gomes prolongou-lhe com boa vontade o efeito pouco recomendável.
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GB é o autor de Burning with desire: The conception of photography, MIT, 1997, traduzido em castelhano como Arder en deseos: la concepción de la fotografía, Ed. Gustavo Gili, Barcelona, 2004. Um livro muito utilizado por académicos para sustentar a escolástica do pós-modernismo. Nunca me foi útil, a não ser para fortalecer discordâncias com o ensino e o mercado dominantes.
Em Espanha, Publio Lopez Mondejar tem também abordado a História da Fotografia espanhola sem se esquecer da tal fotografia "vernacular". Pólvora molhada, sem dúvida, a deste senhor Batchen...
Posted by: CMF | 06/25/2008 at 10:19
Interessante o que acabo de ler, e de que já tinha conhecimento sobre os factos relatados. Mas o facto mais curioso é ler estes comentários neste "blog", para quem também só "existem" alguns fotógrafos (nacionais).........e são sempre os mesmos (!)! Todos os outros não existem! Dos estrangeiros, idem!
Já agora e aproveitando este facto de estar a escrever estas linhas, lembro que vai brevemente ser inaugurada uma excelente exposição no Centro de Arte Raínha Sofia, em Madrid, do Grande Edward Steichen, que em Novembro do ano passado tive a oportunidade de ver em Paris. Como se anuncia sempre "tanta coisa" que se passa em Madrid penso que esta exposição merece inteiramente a sua divulgação e aqui tão próximo.........!
Posted by: MM | 06/25/2008 at 11:13
Obrigado por me lembrar o Steichen, hoje aberto ao público (e já lá estavam em Madrid, por via do PhotoEspaña o Eugene Smith e o Bill Brandt, que também não fazem mal para assegurar uma escolaridade básica - e sem ela vão-se fazendo só umas ocasionais habilidades). Pq será que estas coisas - que importa ver em provas de época - quase nunca cá passam? Apesar de existirem museus e outras instituições que têm ou tiveram responsabilidades (Chiado, Gulbenkian, Culturgest, etc).
E ao esquecido professor historiador podemos lembrar, por exemplo, no género retratos de anónimos, os muitos fotógrafos de estúdio africanos ou um Virxilio Vieitez de Soutelo de Montes, que foram entrando nas histórias: estão sempre a entrar, não é preciso um profeta da "história da fotografia a sério".
Quando alguém vem batalhar contra o "padrão dominante" é quase sempre (quando isso tem eco mediático) porque ele já não domina ou até porque, de facto, nunca dominou - só pareceu dominante retrospectivamente.
Posted by: ap | 06/25/2008 at 18:17
Esta participacao estava a tardar.
Estive a ler a citada entrevista de duas paginas do Publico e as razoes de descontentamento do Alexandre e os comentarios publicados.
Bom... tanto a entrevista, como o post e os comentarios criaram uma discussao interessante e penso que o tom "desinteressado" (talvez um pouco panfletario) do dito Professor tem as suas razoes de ser - que entendo mais como um desafio a que se questione a Fotografia que chegou ate' nos, considerada Arte.
A questao nao deixa de ser pertinente, embora o tom que e' adoptado seja talvez demasiado "radical".
Como 'e obvio, e' impossivel registar historicamente toda a fotografia e dar-lhe um valor artistico.
Tal como e' impossivel regitar todas as pessoas que passaram por este mundo e dar-lhes voz ou distincao.
O processo a que chamamos vida e Historia e' sobretudo um processo selectivo - nao quer dizer que seja o mais justo, mas nao e' essa a sua intencao.
Por outro lado, e devido ao que ja' disse, tambem nao me parece que este historiador/professor, se considere um "profeta" - posso estar enganado, pois nao tenho acesso ao discurso completo que costuma adaptar publicamente, para alem deste que o Publico disponibilizou atraves da entrevista.
Contudo, a Fotografia sofreu varias mudancas de base e de processo - atendendo a que a ferramenta principal do fotografo (artista ou nao) tambem as sofreu.
A maquina fotografica ja' nao e' um objecto que encerra em si um "segredo" - a imagem; hoje em dia e' possivel imediatamente a tirar uma fotografia ver o que aconteceu e tomar uma decisao baseada no que conseguimos ver num ecran de dimensoes reduzidas. A sentenca e' apagar ou guardar.
Entretanto o processo moroso de laboratorio foi substituido por programas de edicao - Photoshops e demais conferindo "poder" ao fotografo, que deixa assim de precisar de contractar alguem especializado, para que possa ver as imagens que produziu.
As imagens por sua vez tambem passaram a ser distribuidas de outra forma - atraves da World Wide Web; que tem um imediatismo, quantidade e disponibilidade maior que qualquer meio de informacao periodica, como jornais e revistas - onde a fotografia teve a maior difusao, durante a sua vida.
Enfim, tudo isto para dizer que a realidade onde a Fotografia existe sofreu alteracoes profundas e discursos como este sao um pouco o de criar a duvida, de se dizerem coisas meio sem sentido ou com um sentido do "vamos comecar de novo e pensar Fotografia"... penso que e' apenas isto que trata a entrevista.
E parece que o conseguiu.
Falando com seriedade sobre o assunto e reflectindo com base neste discurso penso que talvez estas alteracoes de processo sao a base das sempre existentes vozes que se opuseram a que a fotografia pudesse ser uma Arte.
A prova e' que as alteracoes dos processos de captura de imagem democratizaram ainda mais um meio, que por si mesmo ja' era democratico - democratico no sentido que e' mais acessivel enquanto meio de expressao individual.
O proprio discurso herdado de Walter Benjamin atinge agora dimensoes que talvez ele proprio nem tinha sequer imaginado - quase a um extremo.
Quanto 'a inclusao dos instantaneos familiares... o que se pode dizer sobre eles?...
Trazem questoes sobre as relacoes existentes no seio de uma familia? Desconstroem e expoem aquilo que supostamente pertence ao dominio privado?
Sera' que isso tambem nao e' um discurso ja' conhecido de outras artes?
Contudo, existe outra linguagem baseada em instantaneos e que tambem aprecio e ate' faco muitas vezes.
E' uma linguagem mais descomprometida e ate' meio aleatoria que capta imagens de certos momentos que por algum motivo, que so' podera' ser observado mais tarde (quando se usa filme, especialmente), nos fizeram captar.
Eu considero-os experiencias e poderao ou nao ser considerados Arte. Depende depois de uma serie de outros factores, mas considero-os parte importante do processo fotografico, pois de alguma forma fazem-me repensar a forma como vejo e apreendo a realidade.
Acredito que o processo fotografico e' um processo em duas partes e em feedback - a captura e a posterior visualizacao do material captado.
Estas duas fazes ajudam qualquer pessoa que queira trabalhar no dominio da fotografia a encontrar a sua propria linguagem ou construir visualizacoes a partir de experiencias e acidentes - e' tambem importante que estes acontecam.
Claro que isto e' um metodo de trabalho e nao e' por isto que posso dizer que tenha de ser uma regra.
Em todo o caso, acredito que tal como na aprendizagem, tudo leva o seu tempo e por isso este metodo, que no fundo promove a practica e' tao valido como outro qualquer.
Um pianista ou qualquer outro musico, tambem nao pegam num instrumento e tocam a peca da sua vida - eles tambem praticam; e no dominio das artes, apesar da Fotografia ser uma arte visual, apenas consigo encontrar semelhancas com a musica, visto que ambos - fotografo e musico, existem artisticamente mediados por um instrumento (seja a maquina fotografica e toda a parafernalia, ou o instrumento musica, respectivamente).
Daqui concluo que o discurso pode nao ser novo, mas nao deixa de ser importante. A Fotografia acaba por ser a arte da repeticao e fuga dessa repeticao e todos os discursos acerca de si acabam por incorrer do mesmo problema.
Contudo, estas palavras e analogias talvez nao caiam bem, quando vindas de um historiador. O historiador devia ser um cristalizador e nao um visionario da imagem. A entrevista, quando muito, foi feita a um apaixonado da imagem e nao tanto ao historiador, pois no dominio da Historia (da fotografia ou nao), estas palavras estao fora de contexto e como foi referido, nao sao novidade dentro do panorama.
Posted by: Pedro dos Reis | 06/28/2008 at 08:00
Ola' Alexandre,
Ainda sobre este assunto encontrei este website ( http://www.mangofalls.com ).
Envio-o para este post, porque vai ao encontro do que estava a ser discutido relativamente aos instantaneos captados por fotografos amadores (e anonimos) em momentos familiares.
Apesar de poderem nao ser arte, ha' qualquer coisa de misteriosa que me fez navegar interminavelmente por eles: serao as roupas? as caras alegres? o facto de serem genuinas (com a encenacao que se conhece das nossas proprias fotografias de familia?
O facto e' que ao ter visto estas fotografias foi como se de repente estivesse a viajar no tempo de alguem que nao conheco.
Nao vou adiantar muito mais na conversa, mas julgo que vale a pena perder algum tempo a navegar por este website. A historia como o site foi criado tambem e' curiosa.
Posted by: Pedro dos Reis | 06/30/2008 at 15:30