Gulbenkian não celebra 25 anos do seu Centro de Arte Moderna
A 20 de Julho de 1983 o CAM abria com Amadeu de Souza-Cardoso.
Mas no fim da primeira década do século XXI, vive dias de indefinição
Quem hoje passar à porta do Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian (CAM) dificilmente notará seja o que for de extraordinário. Nenhuma inauguração, nenhum evento. Nada. Apenas as três exposições inauguradas há três dias. E, contudo, hoje é o dia do 25º aniversário daquele que já foi o mais importante - e, durante muito tempo, praticamente o único - espaço para a arte contemporânea em Portugal. Um espaço que marcou uma geração. Um silêncio que contrasta com as celebrações dos 50 anos da fundação, em 2007, e que então esvaziaram o centro pela primeira vez em anos, motivando especulações sobre o futuro de um CAM que, nos últimos anos, tem tido dificuldade em encontrar o seu espaço num país muito bastante diferente daquele que o viu nascer.
Não têm faltado, no mundo da arte contemporânea, comentários sobre impasses e até conflitos internos. A existirem, são mantidos em surdina pela Fundação Gulbenkian, que nega qualquer crise. Teresa Gouveia, administradora responsável por este serviço, recusa a ideia de que a ausência de qualquer celebração seja um sinal de desinvestimento. "Pelo contrário, pois todos sabemos qual foi o papel do Centro de Arte Moderna e, neste momento, importa-nos melhorá-lo", explicou há apenas três dias ao PÚBLICO.
Mas que melhorias? Teresa Gouveia refere o anúncio, em Dezembro, da aquisição de terrenos do Parque de Santa Gertrudes para o projecto de requalificação e ampliação do edifício (ver texto ao lado). Na altura previa-se, contudo, o lançamento de um concurso internacional de arquitectura ainda no primeiro semestre de 2008, o que não aconteceu. A administradora desvaloriza o atraso, garantindo que "tudo está a seguir o seu curso": "Estamos ainda a fazer os levantamentos necessários em várias frentes. É um processo complexo, que não tem um calendário fixo e implica muito trabalho prévio no estabelecimento de um programa de arquitectura."
Daí defender: "Mais do que celebrarmo-nos a nós próprios, queremos é realizar a missão para que o CAM foi criado: divulgar a arte contemporânea." Nega, por outro lado, negociações em curso para a saída do fotógrafo Jorge Molder, à frente do CAM desde Junho de 1994.
Os próximos 25 anos
Sucessor do primeiro director do centro, o arquitecto José Sommer Ribeiro, que foi colaborador e amigo pessoal de José de Azeredo Perdigão, Jorge Molder não comenta também uma eventual saída. Diz apenas: "Não estou indissoluvelmente ligado à casa e já cá estou há muito tempo." Só que o CAM "tem problemas de financiamento que o impedem de desenvolver mais actividades", reconhece. "Faz parte de uma instituição muito grande, que faz coisas muito grandes em muitas áreas", pelo que "tem de se ver sempre o CAM em termos relativos".
Molder recua perante a ideia de um desinvestimento: "Não diria isso, diria que a Gulbenkian está a pensar transformar o CAM num museu que possa enfrentar os próximos 25 anos." De momento, explica, as orientações da fundação são para a ocupação da maior zona expositiva como exposições temporárias como Ficção vs Realidade, montada no fim do ano passado e dedicada à exploração dos cruzamentos entre as artes plásticas e o cinema. Ou como a mostra dedicada ao brasileiro Waltercio Caldas, inaugurada na quarta-feira ao lado de outra dedicada a uma jovem artista portuguesa - Susana Anágua - e de uma remontagem da colecção do CAM, um acervo com cerca de seis mil obras e que é a mais importante e representativa síntese da arte portuguesa da segunda metade do século XX.
Molder não responde, porém, se está satisfeito com esta estratégia ou com a lógica de funcionamento do CAM. "É uma resposta que não dou. Não me compete discutir indicações superiores."
O director do CAM aponta antes um aspecto positivo e um negativo do que tem sido a actividade recente do centro. O positivo: o Serviço Educativo, "menos visível para o grande público, mas fundamental num país onde não há formação [artística]". O negativo: a aposta em parcerias e circulações internacionais, que "infelizmente não têm sido tão desenvolvidas como eu gostaria".
Legado de Azeredo Perdigão
No fim da primeira década do século XXI parece pois distante a euforia que marcou a década de 1980 e grande parte da de 1990, anos marcados pelo discurso de Azeredo Perdigão na inauguração do CAM: "A arte - e Gulbenkian sabia-o muito bem - não é produto estável da criação do Homem; antes a história nos ensina que é uma actividade em constante evolução ou transformação e nisso está um dos motivos do seu grande interesse."
Nesse dia o centro abria com uma exposição dedicada a Amadeu de Souza-Cardoso e com a apresentação de duas tapeçarias e duas telas de Almada Negreiros, incluindo o Auto-retrato num grupo (1925) que estivera no café A Brasileira do Chiado, e a primeira montagem da colecção. Esta é composta por obras que começaram a ser adquiridas logo em 1957, com a criação da fundação e o assumir de que da sua missão fazia parte a divulgação da criação contemporânea.
Cultura-Ípsilon
O Centro de Arte Moderna visto por três artistas
Três artistas plásticos de diferentes gerações escrevem sobre o Centro de Arte Moderna
da Fundação Gulbenkian, que hoje faz 25 anos. O que foi, o que é, como pode - e deve - mudar
Uma referência a que hoje falta dinâmica: Joana Vasconcelos
A Fundação Gulbenkian foi sobretudo determinante no meu tempo de estudante. A programação, em geral, era de grande qualidade e actualidade internacional. Ainda hoje recordo os momentos memoráveis proporcionados pelo Jazz em Agosto, os concertos ao final do dia no Grande Auditório, as temporadas de dança do Ballet Gulbenkian, e as exposições e conferências a que tive oportunidade de assistir nessa altura. Lembro-me, em particular, de exposições que me permitiram contactar com o trabalho de artistas que admiro como o Carl Andre ou o Hélio Oiticica e a marcante conferência do Richard Serra. Em relação aos acontecimentos mais recentes, sublinho o esforço de renovação e beneficiação dos magníficos espaços exteriores da fundação, um dos lugares mais agradáveis da cidade de Lisboa, embora essa intervenção não fosse também acompanhada pela actualização do núcleo escultórico, sinal de alguma estagnação no domínio das artes plásticas. Já com alguma tristeza tenho a referir a extinção do Ballet Gulbenkian. Um dos aspectos fundamentais da actuação da Gulbenkian tem sido o programa de concessão de bolsas e apoios aos criadores mais jovens, estímulos que se têm revelado essenciais para a internacionalização das carreiras artísticas, a exemplo do apoio que me foi concedido num momento determinante do meu percurso, quando fui convidada para participar na Bienal de Veneza de 2005.
A Gulbenkian e o CAMJAP foram durante muito tempo espaços de referência na produção artística contemporânea, mas, nos tempos mais recentes, essa dinâmica e actualidade parecem ter-se perdido, dando a sensação que alguns quadros responsáveis não foram oportunamente renovados. Estou, no entanto, convicta de que a Gulbenkian saberá renovar-se a breve prazo, até porque continua a usufruir de excelentes condições e o país necessita de uma Gulbenkian fortalecida e mais contemporânea.
Joana Vasconcelos, 36 anos
Artista plástica
Foi pioneiro, agora é pouco ágil: André Romão
Antes de mais, é importante dizer que o Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão (CAMJAP) faz 25 anos no ano em que faço 24, e que, necessariamente, a minha memória sobre a acção do centro e a vivência do espaço e dos seus programas é relativamente recente. Tornei-me frequentador assíduo do CAM há cerca de seis, sete anos, menos de um terço do tempo em que está em actividade, por isso é-me difícil perceber a sua verdadeira importância no panorama artístico de Lisboa. Essa primeira existência do CAM como um farol na arte portuguesa é para mim uma realidade distante. Quando comecei a visitar sistematicamente exposições, já havia um grande número de outras instituições, museus, galerias, etc.Quando há uns anos respondi a um inquérito sobre o número de visitas por ano ao centro e a última baliza era mais de 15, tive de responder ironicamente: mais de 200! É impossível contabilizar o numero de vezes que lá fui, a entrada para estudantes era gratuita (deixou de o ser recentemente). Volto muitas vezes para ver uma ou outra peça da colecção, a cafetaria também se tornou um ponto frequente para beber café com amigos.
Lembro-me de algumas exposições que foram muito importantes no meu período de formação, como a Work in Progress do Fernando Calhau e a L'Orage do Francisco Tropa, entre outras.
Acho que ultimamente o ritmo tem abrandado e que as exposição duram tempo de mais (não acho, no entanto, que isto tenha afectado a qualidade das propostas apresentadas) e que as incursões num sistema artístico internacional são tímidas.
O CAM, pelo seu carácter pioneiro, comprometeu-se como a apresentação de uma colecção representativa da arte portuguesa a partir do modernismo, construindo uma memória da arte portuguesa que não existia, e isto parece-me essencial. Num período de necessária reformulação e numa cidade ainda com carências no campo da arte contemporânea, o centro tem de assumir uma posição mais dinâmica e ágil, que seja um mecanismo de medir o pulso à contemporaneidade, não sendo isto de algum modo inconciliável (pelo contrário) com as suas responsabilidades históricas.
André Romão, 24 anos
Artista plástico
Colecção única num centro fora do circuito internacional
O Centro de Arte Moderna (CAM) da Fundação Calouste Gulbenkian abria ao público em 1983. A inauguração deu-se mo início da década de 80 do século passado, década caracterizada, entre nós, por pulsões fortes e contraditórias.O processo de concepção e construção do CAM tinha sido complicado, marcado inicialmente pela falta de consenso dentro do próprio conselho de administração da fundação e, depois, pelas críticas ao projecto de arquitectura e à inevitável amputação do jardim. O programa inicial, que previa um centro de arte em que apareciam integrados as artes plásticas e performativas, com ateliers para a criação de obras originais e uma relação dinâmica e informal com a comunidade, foi substancialmente alterado com a instalação naquele espaço de duas instituições independentes: o CAM e o Acarte. Por razões ligadas à natureza da própria fundação estes dois serviços nunca funcionaram sequer de forma integrada, o que levou ao nascimento de duas "casas" com culturas e personalidades diferentes dentro do mesmo espaço.
O CAM cresceu como um centro/museu em que a componente museu foi ganhando mais peso, com uma correspondente perda de agilidade, mas sem nunca se definir claramente por nenhum dos dois caminhos.
A direcção do CAM foi, nos seus primeiros dez anos, entregue a uma pessoa que marcou o meio artístico português da segunda metade do século XX e que tinha estado ligado ao projecto desde o início: José Sommer Ribeiro.
As suas qualidades humanas, o seu talento de diplomata, permitiram-lhe materializar o projecto do CAM e dirigir os destinos daquela casa num contexto institucional muito difícil. O projecto arquitectónico do CAM, marcado desde o início pela gestação acidentada de encomenda, e apesar da competência da equipa de projectistas, ficou longe da qualidade exemplar do edifício-sede da Fundação Gulbenkian. As características dos espaços da exposição, a ligação com a cidade, foram alguns aspectos que logo mostraram deficiências difíceis de gerir.
Apesar das dificuldades institucionais atrás referidas, que se reflectiram na dificuldade de constituir uma equipa e definir claramente um programa, Sommer Ribeiro conseguiu fazer uma obra notável. A constituição de uma colecção única de arte portuguesa, só possível pelo seu bom relacionamento com os vários intervenientes no "mundo da arte" em Portugal, é talvez o aspecto que me parece mais importante do seu período à frente do CAM. Infelizmente a colecção ficou quase exclusivamente centrada na produção portuguesa, não permitindo a contextualização das nossas artes visuais num meio mais alargado.
A colecção é, de certa forma, um espelho da programação, em que foi dada muita importância às exposições monográficas de artistas portugueses, acompanhadas da edição de catálogos que, apesar da qualidade irregular das colaborações, tiveram grande importância, dada a escassez da nossa historiografia e a pobreza do nosso meio editorial nesta área. A concentração da atenção e dos meios na produção interna impediu a inserção da actividade do CAM num circuito internacional. Alguns exemplos numericamente pouco significativos de grandes exposições internacionais, como a exposição Diálogos, tiveram impacto no meio local, mas são mais a excepção do que a regra.
O CAM foi, no seu período inicial, e esse período foi muito importante para a construção da imagem com que dele fiquei, uma instituição pioneira, num meio onde não existia mais nada dedicado à arte moderna e contemporânea. No seu pioneirismo ocupou um espaço histórico de transição entre a incultura do Estado Novo, o ensimesmamento do PREC e a postura aberta e cosmopolita que começou a afirmar-se a partir da segunda metade dos anos 80.
Rui Sanches, 54 anos
Escultor e director adjunto
do CAM entre Julho de 1994
e Setembro de 1998
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