Polémica em torno do "flagrante": Álvaro Colaço, Silva Nogueira, San-Payo e João Martins
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No nº 8 da revista "Objectiva", de Janeiro de 1938, intitula-se "O I Salão Internacional de Arte Fotográfica visto 'Objectivamente'" uma crítica de M. Alves de San-Payo, pp. 121-122, que quer estabelece a norma conciliadora no meio salonista, ao referir-se à "exuberante" representação portuguesa:
"Os trabalhos do Comandante Martins repletos de sentimento e técnica irrepreensível; as paisagens de Ponte de Sousa, verdadeira sensibilidade de artista; os mimosos trabalhos de João Martins cheios de poesia e saudade; as marinhas e estudos de F. Viana, os tipos de Álvaro Colaço, os bromóleos de F. Bonacho, as paisagens de W. Orton, os estudos de Henrique Manuel e os flagrantes de W. Heim não ficam mal ao lado do que de bom se faz no estrangeiro".
Anita desgrenhada, de Álvaro Colaço, fotografia exposta no 1º Salão
Entretanto, o artigo de abertura é da autoria do Dr. Álvaro Colaço, pp. 119-120, ilustrado com uma foto do pp, embora o título seja "I Salão Internacional de Fotografia - Os Fotógrafos Húngaros".
É aí que se vai desencadear uma importante polémica sobre o "flagrante", a objectividade, e em geral a fotografia pura. É, em grande medida, a defesa da straight photography contra a sobrevivência do picturialismo - e o debate, mais ideológico que prático, não é excessivamente retardado (o Grupo f/64 manifestara-se em 1932). É tb a defesa de uma observação do mundo que tenta seguir regras modernistas de uma "Nova Visão" pacificada e que parece reflectir de forma vaga alguma informação sobre os projectos documentais que marcam a década.
O tom começa por ser muito crítico da "inestética arrumação dos trabalhos expostos" e da classificação por países, e fala em "fracasso" do Salão. Depois, o destaque dos húngaros, em especial do "chefe de fila" Erno Vadas (1899-1962), serve a defesa da "fotografia pura" e do olhar modernista contra os "processos chamados artísticos".
É uma apologia da arte "que regista em flagrante um instante da Vida, o tal e qual, as cenas e atitudes dos seres que mostram aos nossos olhos os momentos que eles já viram, que nós mesmo já vivemos, e cuja repetição faz parte integrante da nossa existência." Defesa "da arte concreta, fiel à natureza, da arte do vivo e sobre o vivo, da arte por assim dizer objectiva", diferente da "outra faceta da arte que é abstracta, filosófica, subjectiva" (noutro passo, é "concepcional, imaginativa, quase irreal").
Trata-se de cultivar "o flagrante, pondo de parte a estulta pretensão de fazer arte como a Pintura". Das cópias dos húngaros diz que têm "uma transparência cristalina, encantadora, sem a mácula do retoque, dos truques, dos pincéis, das tintas, etc. (...) É fotografia pura, simples e grande, ... "
E termina: "Os prosélitos dos processos chamados artísticos devem pôr de parte a pretensão de querer tirar à prova o aspecto fotográfico, convencidos de que a melhoram, quando em verdade eles não conseguem dar a extensa escala de valores e a frescura das meias tintas com a mesma harmonia e limpidez das cópias da escola húngara."
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Quem responde de imediato a Álvaro Colaço é o profissional retratista Silva Nogueira, logo no nº 9, de 1 de Fevereiro, enquanto a abertura da revista é dedicada ao "I Concurso e Exposição de Estudo Fotográfico" então em organização, para o qual se estabelece o formato obrigatório de 18 x 24 ou 20 x 20cm, com a apresentação junta da cópia directa do negativo.
O artigo "Arte Fotográfica - O Flagrante" de Silva Nogueira, p. 136-38, aparece ao lado do retrato de Tomaz Alcaide, exposto no I Salão, precedido por um distanciador "A pedido,d publicamos, textualmente:"
Na sequência daquele Salão e de algumas presenças vindas do exterior, diz, "Defende-se e exalta-se a nitidez nua e crua, o brilho ofuscante das provas, a arte brutalmente objectiva, a facilidade, o género cá estou eu." Ele coloca-se contra "a admiração pelo fácil, pelo flagrante". Aliás, os elogiados trabalhos dos húngaros seriam apenas publicidade para magazines e não deveriam entrar numa "Exposição de Arte".
Para Silva Nogueira, "O flagrante tão admirado e defendido como arte e técnica por um distinto amador, em detrimento dos autênticos processos artísticos, não tem razão de ser. O flagrante é o mais fácil dos procedimentos fotográficos. O flagrante é o cliché dos que principiam, o cliché dos que não sabem compor, dos que não sabem procurar..."
É certo que alguns "clichés em flagrante deram obra de arte", mas o que importa é a "procura do flagrante pelo processo do estudo, do saber, da composição, da naturalidade, do bom gosto, do momento preparado."
Prefere "os formidáveis retratos dos fotografos alemães": "Ali, sim; há arte verdadeira, há estudo do carácter de cada fotografado, há composição, há luz adequada, há trabalho, há dedo, há faísca!"
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O dr. Álvaro Colaço volta à carga na edição seguinte, em "Os Fotógrafos Belgas", outra vez um artigo de abertura do nº 10, 1 Março de 1938, pp.151-3, e segundo diz escrito "a convite de 'Objectiva'". A propósito de Léonard Misonne, o velho picturialista tb exposto no I Salão.
Trata-se de precisar ou matizar a sua posição anterior, enquanto admirador de duas tendências diferentes: "focar a paisagem, tirando-lhe as imperfeições do real para que ela nos dê quietação e encantamento espiritual (no caso de Misonne), ou surpreender os aspectos da vida humana relacionada com a Natureza e aos quais procuram dar a maior realidade" (os húngaros). "Tranquilidade e impressionante sentimentalismo" vs "movimento e espontaneidade".
"O flagrante fotográfico não é uma arte, nem uma técnica, mas simplesmente o estado dum assunto em pleno dinamismo, colhido pela rapidez de observação do operador. Fazer o flagrante com arte, isto é, observar e compor rapidamente, tornando os assuntos belos, é dom dos inteligentes, dos brilhantes como Vadas, Keighley, Mortimer (...), e não dos "tardios" cujo raciocínio lento é incapaz de executar depressa e bem."
Segundo diz, "É no flagrante que Misonne mostra o auge do seu talento", no caso dos "dois flagrantes de estados cósmicos, obras primas de movimento e composição, onde a verdade visual é focada magistralmente (...)", que a revista publica. Para apoiar a improvável tese, cita uma declaração do próprio, mestre do processo de óleo, em Fev. de 1938 a uma revista inglesa: "I am going back to pure photography".
No mesmo nº 10, "O que é o 'Flagrante'", de San-Payo, que é tb autor da respectiva capa:
"Na capa: fotografia de mestre San-Payo" (!!)
"Ir para o campo, para as montanhas ou para o mar e surpreender o efeito momentâneo de luz que ilumina um plano interessante, a linha do horizonte, grupos de casas e de árvores, o rebanho que passa (...) e saber enquadrar rapidamente qualquer destes assuntos, é realizar o flagrante artístico fotográfico. E na vida quotidiana das cidades, das aldeias ou dos campos, quantos motivos de arte que o flagrante conseguirá!"
Começa por dizer que "O fragrante é, no nosso entender, o princípio básico e a anima mater de todas as artes". Apoia Álvaro Colaço, "espírito moderno e desempoeirado", mas sustenta uma variante moderada e conciliadora, segundo a qual a verdadeira obra de arte conjuga a objectividade e o subjectivismo.
Defende "a verdadeira Fotografia de Arte que só o flagrante pode produzir", o "flagrante que só os eleitos sabem descobrir, sentir e realizar".
"Saibam surpreender a Natureza em flagrante com boa visão, ponham a sensibilidade educada e culta em acção e disparem."
E conclui:
"Ao flagrante, ao flagrante, amadores, artistas e profissionais competentes! O flagrante deve ser a suprema aspiração de todos os que se dedicam à arte do claro-escuro."
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Por fim, no nº 11, em "Algumas reflexões sobre a Arte Fotográfica," João Mendes dá as suas receitas, pp. 168-9:
"Para dar personalidade e arte ao seu assunto, o fotógrafo só pode contar com aquela paciência e visão artística com que nasceu."
É preciso "eliminar tudo o que seja banal" (sabendo que "a pintura é uma arte superior")
"É a luz, uma luz sabiamente escolhida, mercê, às vezes, duma paciência evangélica, que origina a Arte Fotográfica."
Mas a "luz verdadeira", jamais "a luz que um hábil retoque tenta imitar para fins artísticos. Parto do princípio que a fotografia para ser fotografia tem de ser verdadeira e reproduzir com fidelidade a verdade das coisas".
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No nº 12, de Maio, último nº do 1º vol., assinala-se a abrir "Um ano de trabalho", e defende-se "Objectiva" como "campo de instrução e não de batalhas": "quando nos vimos obrigados a fazer chocar ideias e teorias, procurámos faze-lo sempre com elevação e critério construtivo". Nas fotos reproduzidas parece visar-se a conciliação: com Lacerda Nobre ("Nudez") e Silva Nogueira.
Mas o Padre Moreira das Neves vem encerrar um tempo de alguma renovação, com o artigo:
"A Contribuição da Arte Fotográfica nas celebrações do Duplo Centenário da Fundação e Restauração de Portugal", pág. 188
Depois de referir a "Nota oficiosa" de Salazar sobre os centenários, exorta a "que desde já comecemos todos a preparar-nos para as comemorações extraordinárias a realizar em 1939 e 1940".
"Sabe-se que a Fotografia é um dos meios mais eficientes de propaganda, de vulgarização de factos, em todos os campos (...). Não faltam assuntos a explorar carinhosamente. (...) Ermidas, cruzeiros, padrões, lápides, castelos, campos de batalha, bandeiras esfarrapadas, paisagens evocativas, areias que ainda agora nos falam da largada das caravelas, tudo são motivos oferecidos à objectiva."
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