EXPRESSO/Revista 22/05/1993, pp 46-47
7ºs Encontros da Imagem de Braga, 1993
“Mestre Kertész”
HÁ DOIS encontros de fotografia nos Encontros da Imagem de Braga. Dois
modos de divulgação da fotografia, apenas coincidentes no tempo desta
7ª edição: Kertész e os outros.
André Kertész, que é habitual considerar um dos maiores fotógrafos de
sempre (ou mesmo o maior), é apresentado pela exposição «Ma France»,
uma selecção das fotos que realizou em Paris entre 1925 e 1936,
associadas a algumas outras com datas que vão de 1948 a 1984,
resultantes de episódicos regressos a França. Pierre Bonhomme, o
comissário, estruturou-a numa sequência de núcleos temáticos que se
distribuem pelas pequenas salas do Museu dos Biscainhos: retratos dos
amigos húngaros também exilados, retratos de artistas e escritores e
fotografias dos cafés ou ateliers parisienses (Mondrian, Chagall,
Zadkine, Foujita, Lurçat, Mac Orlan...), reportagens publicadas na
imprensa da época, fotografias escolhidas pelo próprio autor para
exposições nos anos 20 e 30, a série das «Distorções», as vistas de
Paris, etc. Por outro lado, colocou em contiguidade, no interior de
algumas das séries, fotografias com quase seis décadas de distância — e
só as legendas permitem em muitos casos distingui-las.
A mostra foi acompanhada pela importação de alguns exemplares do
livro-catálogo com o mesmo título (Ma France, «Collection Donations»,
volume 2, coedição La Manufacture e Ministère de la Culture, Paris,
1990; 276 págs., 395 FF, 10. 000$00). Além de ser um album belíssimo,
onde se segue a mesma ordenação da exposição, com mais imagens e mais
documentação, os textos de Isabelle Jammes, Jean-Claude Lemagny, Michel
Frizot e em especial Sandra Phillips constituem uma contribuição
importante para enquadrar o itinerário francês do fotógrafo. Exposição
e livro resultam dos primeiros anos de trabalho sobre o espólio de
Kertész, confiado à Mission du Patrimoine Photographique (da Direction
du Patrimoine, Paris), que tem precisamente por atribuição a
prospecção, a conservação, o estudo e a divulgação das doações
fotográficas feitas ao Estado, e de que Pierre Bonhomme é o director.
NASCIDO em Budapeste em 1894, André Kertész chegou a Paris com 31 anos, já como fotógrafo publicado e premiado, e integrou-se rapidamente nos meios da vanguarda artística e literária do tempo, ao mesmo tempo que começava a colaborar como «freelancer» em revistas franceses e alemães. Em 1928 trocou os seus pequenos aparelhos pelos 35 mm da Leica e foi um dos primeiros fotógrafos a explorar as possibilidades mecânicas e estéticas da nova câmara, que lhe permitia associar a declarada atitude de amador com a expontaneidade do olhar e a velocidade do registo, transportando-as para um novo estilo de magazines.
Fundador da fotografia moderna, Kertész foi nesses anos, simultaneamente, o passeante disponível para os encontros de acaso, que Breton teorizava, e o turista guiado nas ruas de Paris pela curiosidade e pelo pitoresco; foi o repórter, o publicitário e o artista que fundia numa mesma prática da fotografia um olhar avesso a todos os sistemas: «entre uma fotografia de ilustração e uma fotografia estritamente pessoal, a diferença está sobretudo no uso que delas se faz; ninguém já as separa uma da outra, nem as hierarquiza», escreve Pierre Bonhomme (Ma France, pág. 12). Com ele, que foi o primeiro a introduzir o humor na fotografia, como notou Pierre de Fenoyl, o onírico surrealista nunca se transformou em receita de escola, a estruturação pós-cubista da composição não se encerrou na pesquisa formalista, a atenção ao imprevisto não se prendeu à busca do anedótico, e a relação calorosa com o mundo não se fixou no humanismo sentimental que marcou grande parte do realismo francês.
Nos retratos e fotografias de atelier, por exemplo, a aproximação ao universo próprio de cada um dos artistas materializa-se ora no rigor da espacilidade recticulada de Mondrian, ora na presença ondulante e evanescente do casal Chagall. O interesse pela construção geométrica da imagem não limita a discrição do concreto; o sentido dos espaços e o gosto pelo pormenor, a elegância gráfica, a preocupação pela captação das matérias e das estruturas é simultânea com a permanente relação sentimental com o real; o rigor plástico, que pode fazer da fotografia publicitária um radical momento de estudo das formas (La fourchette, 1928), exprime uma certa arte de viver. Kertész não teoriza nem se fixa numa atitude; inventa e abre caminhos sem criar uma escola; ensina a ver e estabelece um catálogo de temas que outros explorarão. «Eu sou... um amador e tenciono permanecer um amador toda a minha via», dizia em 1930 (cit. pág. 65).
Em 1936, no entanto, Kertész aceitou um contrato com a agência Keystone, em Nova Iorque, e iniciou então um longo e amargo exílio americano que durou até à morte em 1985. Só em 1962, ao abandonar um contrato de exclusividade com o grupo Condé Nast, para quem fez fotografia de moda e de arquitectura interior, voltou a dedicar-se livremente à sua obra pessoal, já com 68 anos; no ano seguinte recebeu a medalha de ouro da Bienal de Veneza e conseguiu recuperar os negativos húngaros e parisienses deixados em França e escondidos durante a guerra. Obtivera a nacionalidade americana em 1944 e a partir dos anos 60 conheceu um segundo período de reconhecimento (MoMA, 1964), mas, ainda em memória dos seus anos mais felizes e fecundos de Paris, acabou por doar em 1984 todos os seus negativos (100 000), documentação e correspondência ao «povo francês». (A colecção pública — e secreta — da SEC possui duas fotografias de Kertész, Distorção # 76, de 1933, e Brick Walls, de 1961).
TEM SIDO muito rara, em Portugal, a possibilidade de contacto directo com a obra dos criadores essenciais da história da fotografia, através de exposições monográficas acompanhadas por catálogos que as estudem e que coloquem as imagens à disposição de olhares mais demorados. As instituições públicas (Gulbenkian, Serralves...) e os encontros de fotografia (Coimbra, Braga, etc) têm dispersado a sua actividade por figuras laterais ou tidas por mais modernas, com algumas excepções meritórias; mais raramente ainda completam a exibição efémera das fotografias com a realização ou importação de catálogos. Também por esse motivo, a exposição Kertész deve ser saudada como um acontecimento excepcional.
Mas o facto de se tratar de uma retrospectiva (onde faltam, naturalmente, as fotografias feitas na Hungria desde 1912 e toda a produção americana) não remete esta antologia para um qualquer distante limbo da História, nem autoriza uma abordagem historicista que se estabeleça em contraposição ao que seria o presente da fotografia.
Se a obra de Kertész atravessa todo o século e se ele é o mestre reconhecido de tantos outros criadores (de Brassaï, de Cartier-Bresson, da fotografia humanista francesa, de Gibson, etc), poderá reconhecer-se também que a sua produção das últimas décadas não é o prolongamento de um estilo, a mera sobrevivência de um modo ou de um olhar. É a obra da maturidade de um grande artista, mesmo quando, em Nova Iorque, depois de duas agressões, já quase só fotografava a partir da janela da sua casa, ou quando, em 1984, revisitava em Paris as «Distorções» que publicara em 1933 por encomenda do jornal «Le Sourire». Não foi por acaso que na edição do EXPRESSO/Revista comemorativa dos 150 anos da fotografia (7.10.1989) Jorge Calado escolheu uma fotografia de Kertész para documentar a década de 60.
É que a fotografia não se deixa apreender segundo o modelo historicista reinante nas artes plásticas e, como diz, por exemplo, Jean-Marie Sheaffer e esta exposição de Kertész plenamente demonstra, «pode colocar-se lado a lado uma imagem dos anos 40 do século XIX e uma fotografia contemporânea sem se experimentar um desvío histórico de princípio» ou de «horizonte semiótico» (L'Art de l'Âge Moderne, 1992, pág. 366). «O ritmo da evolução da fotografia não é o de uma progressão» e nada confirma as teses de «uma evolução teleológica que iria de um realismo mais ou menos ingénuo para uma espécie de meta-fotografia que acabaria por absorver a fotografia nas artes plásticas» (idem).
No entanto, é esse tipo de discurso, banalizado por certa crítica que serve de caução à ignorância de muitos fotógrafos e ao regresso actual a novas (?) modalidades de «fotografia artística» e de maneirismo conceptual ou picturialista, o que impera na rede internacional dos Encontros de fotografia e se manifesta, em Braga, na generalidade das exposições, conferências (como as de Manuel Vilariño e Michael Kohler, no dia 9) ou textos de catálogo. Um exemplo apenas dos múltiplos erros em circulação, colhido na apresentação destes Encontros: «É sabido que apenas a partir dos finais da década de 70 a fotografia, enquanto projecto artístico, começa a ter, em Portugal, um corpo regular de criadores» (a afirmação tem, pelo menos, um século de atraso).
PARA além de comprovar a ineficácia da ideia de uma progressão temporal da fotografia equiparada à lógica da sucessão dos estilos e das rupturas das artes plásticas (o que não significa ignorar a evolução de problemáticas, dos modos de circulação e de recepção, e, em especial, os progressos técnicos), a obra de Kertész é também excepcional na relação que estabelece com a ideia de estilo em fotografia. Sucede, de facto, que a caracterização da sua produção levanta o exemplar problema da impossibilidade de definir facilmente uma «maneira» pessoal, uma linguagem, uma autoridade feita de uma estratégia conceptual ou formal estabelecida — e é a busca imediata dessa facilidade, a coberto de uma qualquer «vontade de arte» ou «projecto artístico», que caracteriza a maior parte da fotografia que se expõe na nova modalidade de salões de arte fotográfica que são a generalidade dos Encontros.
Como sintetiza Jean-Claude Lemagny, repetindo muitos outros observadores precedentes, «a obra de Kertész parece recusar-se a dar oportunidade à análise crítica porque ela não deixa isolar nenhum acento dominante que permita a fixação dos comentadores» (Ma France, pág. 105). E Kertész é um fotógrafo maior precisamente porque o contacto imediato que estabelecemos com as suas imagens, graças a uma relação sempre disperta e calorosa com o mundo, que é descoberta pessoal e comunicabilidade, se prolonga nessa dificuldade de abordagem do discurso crítico, incapaz de arrumar a sua fotografia na gaveta de uma escola ou fórmula ou período.
Num terceiro nível, a exposição Kertesz é ainda exemplar. Ela vem dar conta de um entendimento da fotografia que se consolidou já na sua dimensão patrimonial e museológica, através de estruturas oficiais que a conservam, estudam, expõem e põem em circulação. A França está actualmente na dianteira dessa actividade, ao cabo de uma década de sólidos investimentos públicos, e faz dela uma das armas mais poderosas da sua representação cultural no exterior. Em Portugal, todos os esforços se concentram ainda numa actividade efémera de divulgação, permanentemente recomeçada e incapaz de estruturar bases sólidas de investigação e difusão, tanto a nível público como de iniciativa local ou associativa. Parece que, em Braga, a Câmara já aprovou a instalação de um museu da fotografia que dê uma nova consistência ao esforço de divulgação empreendido pelos encontros — aguarda-se que a concretização dessa promessa pioneira sobreviva ao ano de eleições.
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EXPRESSO/Cartaz "Actual" de 17 Abr. 1993
«Braga, a fotográfica» (o programa dos 7ºs Encontros): «De corpo e alma»
Para lá dos mestres, Braga mostrará, entre 8 e 30 de Maio, os espanhóis Javier Vallhonrat («Autogramas»), Humberto Rivas (n. 1937, Buenos Aires, retrospectiva) e Fernando Herráez («Linha de praia»), e os franceses Georges Dussaud («Trás-os-Montes»), Philippe Assalit («Géantes») e Lionel Bayol-Thermines («Mémoires»). Quanto a fotógrafos portugueses, anunciam-se José Pastor («L'Homme») e António Carvalho («Imagens insalubres»), além de uma produção sobre Braga («A alma do barroco») encomendada a João Tabarra, Graça Sarsfield e Manuel Miranda. Por último, o programa inclui ainda uma mostra panorâmica dedicada a «O Nu na fotografia alemã, 1905-1945» e uma individual do argentino Gerardo Suter («Codices»).
Tematicamente, os Encontros tomam por tema um título de novela, «De corpo e alma», ao mesmo tempo que reforçam o programa de conferências (Jean-Luc Monterosso, Patrick Rogiers, Mark Haworth Booth, Manuel Vilariño, José Pessoa e Michael Kohler) e as sessões de crítica de portfolios, em que intervêm Fred Baldwin, Frits Giertsberg, Chantal Grande, Joel Brard, David Balsels, Francisco Gonzalez, Rune Hassner, Charles-Henry Favrod, Eric Perrot, Manuel Sendon e X.L. Suarez Canal, vindos de Houston, Roterdão, Tarragona, Paris, Barcelona, Tenerife, Goteborg, Lausanne e Vigo.
Perante a dimensão do programa e das participações anunciadas, espera-se agora que os Encontros sejam dotados das condições organizativas adequadas. É que não basta expor — é preciso fazer bons catálogos, importar livros, divulgar textos informativos com qualidade (o que aliás não acontece com as primeiras informações divulgadas). Não basta também anunciar a deslocação de personalidades estrangeiras a Braga — é preciso cumprir os programas previstos, criar oportunidades de encontro e de debate, sedimentar a circulação das imagens e das informações, passar dos encontros efémeros a uma acção continuada. Espera-se, nesse plano, um salto qualitativo.
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