EXPRESSO Revista de 11-05-96
10ºs Encontros da Imagem, Braga
Fotoficções
A fotografia já está regionalizada, em Coimbra, Braga e Vila Franca de Xira; falta agora que «o centro» cumpra as suas obrigações em domínios onde ninguém o pode substituir: a pesquisa histórica e a conservação patrimonial, as colecções públicas e a divulgação sistemática, o apoio à criação, à edição e à circulação, etc. O assunto estará hoje em debate no sossego beneditino do Mosteiro de Tibães.
No ano em que os Encontros da Imagem chegaram à décima edição, os novos poderes concederam-lhes condições financeiras (24 mil contos num orçamento global de 38 mil) mais equitativas em relação às atribuídas a Coimbra. Com vinte exposições de maior ou menor dimensão e interesse, com extensões a cinco localidades próximas (Guimarães, Barcelos, Vila Verde, Famalicão e Póvoa do Lanhoso) e com a presença na inauguração de directores de festivais e instituções internacionais, são uma realidade de projecção nacional e são reconhecidos externamente.
Assegurada a realidade dos Encontros de Braga, a presente edição ocupa-se do tema «Ficções e narrativas», que também veio a ser o dos próximos «Rencontres» de Arles. Desde 1992, os organizadores, Rui Prata e Carlos Fontes, estruturam o seu programa em torno de um tema genérico e já percorreram os títulos «Retrato e reportagem», «De corpo e alma» (93), «Homo faber» (94), «A Europa e o mar» (95). Para 1997, anuncia-se «O imaginário do quotidiano».
São, portanto, os campos do ficcional e do alegórico, do subjectivo e do autobiográfico que se visitam nas fotografias de Braga, e também, em situações que podem ou não coincidir com esses campos, os caminhos da fotografia encenada e construída, para os quais a especificidade do medium não se reduz ao automatismo da objectiva e à suposta ou procurada objectividade do «olhar fotográfico», antes se pode prolongar, envolvendo o olho e a mão, até à fabricação da prova impressa. O tema «ficções e narrativas» é suficientemente abrangente para nele poderem caber quase todas as práticas fotográficas, com predomínio das que afirmam a sua intenção estética, mas sem excluir projectos de fotografia aplicada e de reportagem.
Vertentes desde sempre presentes na história da fotografia, mesmo que para os fotógrafos não fossem conscientes e deliberadas, aqueles tópicos não definem qualquer ruptura mais ou menos recente, nem permitem reactivar confrontos ideológicos entre puristas e adeptos da miscigenação dos media. De facto, o programa está organizado de modo a fazer convergir sob a ideia de «ficção e narrativa» quer produções que cabem na linhagem dos programas documentais, quer as que pretendem ser de criação artística e «plástica» — e um projecto documental pode assumir o valor de exposição do quadro (desde Baldus ou Fenton, por volta de 1850).
Ao colocar Man Ray como figura tutelar dos Encontros, mas ainda sub-representado no dia da inauguração, os organizadores também afastam do seu horizonte antigas querelas sobre a identidade artística ou não artística das imagens, já que se trata de um autor que circulou indiferentemente por quase todos os territórios da arte e da fotografia (de arte ou não), passando da pintura ao retrato de encomenda, da provocação dadá à fotografia de moda, do objecto surrealista ao respectivo registo fotográfico.
Note-se, entretanto, que com a excepção de Man Ray e de Arthur Tress, e para além da fidelidade à relações espanholas e às produções portuguesas, a programação conta com fotógrafos em geral jovens e desconhecidos, vindos de origens também periféricas como a Finlândia, Suécia, Escócia, Canadá e Austrália, que, em alguns casos, fazem em Braga as suas primeiras exposições internacionais. A ausência de vedetas poderá desiludir alguns, mas tem o possível valor acrescentado do risco e da descoberta.
LUGARES DO CORPO
Heinrik Duncker e Yrjö Tuunanen, dois jovens finlandeses, apresentam a exposição que melhor ilustra a vastidão do sentido da «ficção e narrativa» em fotografia. Inquérito sociológico e trabalho de fim de curso, «Hay on the Highway» é um projecto documental que interroga a evolução recente da vida de agricultores de duas regiões do seu país no quadro das transformações económicas aceleradas pela integração na Comunidade Europeia, mas realizado segundo as regras da fotografia encenada e partindo, portanto, de uma relação de colaboração e de diálogo com os individuos-actores retratados.
Duncker, nas imediações de Helsinquia, encenou os actuais herdeiros de antigas mansões agrícolas, em imagens que sublinham entidades fantasmáticas, trocando a nostalgia pelo humor; Tuunanen, na Finlândia central, utiliza um grande cenário pintando para criar os seus «quadros vivos» sobre a reconversão das explorações à agricultura biológica, à apicultura, à carpintaria e à venda directa dos produtos.
Entre a encenação ficcional e a «objectividade» do documentário não existe uma fronteira de princípio, como provaram Edward S. Curtis, que, entre 1900 e 1930, fotografou os índios americanos fazendo-os recuperar práticas e trajos já abandonados, e também August Sander, que contava com a colaboração dos modelos para construir o mapa das classes alemãs sob a República de Weimar («Homens do Século XX»). Os projectos britânicos de Martin Parr sobre a decoração doméstica ou a relação com o automóvel exploraram idênticas linhas de renovação do documentário e Sebastião Salgado sabe ser um prodigioso encenador de corpos e de gestos para «escrever» as suas epopeias. A questão da «verdade» (e também a da arte) tem com a fotografia, como se sabe, a mais precária das relações.
Se a família enquanto célula base de uma agricultura nórdica não proletarizada é o fulcro do espaço social investigado por Duncker & Tuunanen, é a intimidade das relações familiares dos próprios fotógrafos que é abordada em três outras exposições.
O escocês Collin Gray apresenta um trabalho desenvolvido ao longo de 15 anos, no qual fotografa os pais (série «The Parents») no seu ambiente doméstico e onde a dimensão ficcional se vai acentuando com o passar do tempo, por um acréscimo da teatralização e da introdução de adereços fantasiosos. Gray utiliza a cor, a iluminação artificial e o formato quadrado, e o que é inicialmente um aparente registo realista dos rituais quotidianos vai dando lugar à criação de um teatro privado que o fotógrafo encena com os seus actores privativos, onde o humor, a memória e o imaginário parecem responder em crescendo à inevitabilidade da rotina e do envelhecimento: é um jogo contra a morte.
Fotografias de família, também, mas mais próximas do album de amador e da tradição de uma poética do quotidiano a preto e branco, são as do canadiano Bertrand Carrière, que em «Voyage à Domicile» toma por tema a sua própria intimidade familiar. Memorização de instantes banais, mas distanciada da banalidade fotográfica, define-se como «um documento pessoal e íntimo capaz de ultrapassar a fronteira entre o privado e o público», com a qual o fotógrafo faz do seu trabalho uma autobiografia, identificando a vida e a obra, «questionando» a proximidade entre paternidade e autoria. A ver em Barcelos, no novo Museu da Olaria.
É ainda um album de família que mostra Luisa Ferreira, numa instalação de retratos da filha recém nascida («Quando for quinta-feira, foi assim»), em que a marcação sistemática do tempo se acompanha por um tratamento pictórico das provas. Ao recuperar o retrato familiar como projecto de autor, a intenção de arte recorre ao efeito distanciador do «flou» picturialista, mas, recobertas pelas pinceladas visíveis de uma tintagem castanha, as imagens sugerem a continuidade de um ambiente amniótico com que se exprimirá a experiência da maternidade.
Outro espaço doméstico é ainda o da sueca Maria Hedlung, na série «At my home», embora a presença dos corpos apenas se deixe adivinhar nas discretíssimas marcas impressas numa parede ou à volta de um interruptor. Em outras imagens, «hiper-realistas», os mesmos espaços brancos nitidamente observados são invadidos por bolores, gorduras ou ferrugens, enquanto um comentário ficcionado sobre uma casa invadida por vermes constroi uma sugestão de pesadelo.
Entretanto, José Pastor dá o título «YX», provável referência aos cromossomas, a imagens de corpos tornados difusos pela manipulação das provas. O desígnio e o significado são aqui confidenciais.
COISAS FABRICADAS
Numa segunda sequência de exposições aproximáveis, a encenação dos corpos dá lugar à encenação dos objectos. É mais evidente aí a proximidade intencional com um pólo pictural que desde sempre marcou a fotografia, em diálogo com o pólo da imagem «directa» (e a evidente permanência dessa tensão bipolar desmente a tese da absorção actual da arte fotográfica pelo campo das artes plásticas).
Este é um vasto campo em que o género tradicional da natureza morta, apropriado pela fotografia desde os seus primórdios, se prolonga sem alteração substancial na fotografia construída, das montagens simbolistas aos objectos surrealistas e até à foto-instalação. Entretanto, a mesma direcção cruza-se com os processos da fotomontagem e da fotografia manipulada, prosseguida agora com novos recursos gráficos e tratamento informático, com uma desrealização da imagem que tem precedentes na abstracção fotográfica.
Arthur Tress (Nova Iorque, 1940) apresenta sob o título «The Wurtlizer Trilogy» três séries recentes. Pintor, foto-reporter social nos anos 60 e depois empenhado nas vias do imaginário e dos arquétipos, Tress é um precursor de uma contemporânea compulsão pela acumulação de objectos kitsch, um recolector de objectos encontrados e pesquisador de feiras da ladra, um «coleccionador de sonhos». Em «Teapot Opera», de 88, utiliza um pequeno teatro victoriano de papel para encenar objectos, em que a junção de textos acentua o carácter simbólico e narrativo; «Fish Tant Sonata» é uma «fantasia ecológica» onde utiliza um aquário para dispôr naturezas mortas diante de paisagens reais, enquanto em «Requiem for a Paperweight» utiliza apenas elementos gráficos para a construção de uma sequência ficcional próxima da banda-desenhada.
Dois outros escoceses, Ron O'Donnell e Calum Colvin, utilizam imagens kitsch, meios plásticos e referências à história da arte para compor alegorias que seguem os diferentes caminhos da fotografia construída e manipulada. O humor e o comentário social e político domina a reciclagem do lixo, as esculturas efémeras e as montagens que O'Donnell organiza previamente como construções espaciais, acumuladas e pintadas, destinadas a serem fotografadas, e que expõe como quadros fotográficos. Mais próximo da colagem e da ilustração, o trabalho de Colvin refere-se directamente a Bosch, numa série sobre os pecados mortais onde a amálgama de objectos de consumo corrente, textos e elementos gráficos, com manipulação informática, se vê como trabalho do suporte fotográfico, mesmo que este se desligue do possível valor de «prova» para ser inteiramente uma superfície fabricada.
Numa diferente linhagem que vem do objecto dadá e do humor surrealista, Chema Madoz (Madrid, 1957) utiliza um muito clássico preto e branco documental para registar as suas construções de «poemas visuais» que cultivam, pela alteração de objectos do quotidiano, o gosto do paradoxo e do absurdo.
António Carvalho, fotografando cartas de jogar encontradas, a que acrescenta leituras de cartomante, e Fernando Pinheiro de Almeida, mostrando cerâmicas kitsch, são as presenças nacionais nesta área.
FICÇÃO ESCRITA
Também do domínio da ficção é o prefácio do catálogo dos Encontros escrito por André Rouillé, director da revista «La Recherche Photographiques», de Paris. Mas ficção, neste caso, tem o sentido do disparate ou mistificação, porque o que se trata é de inventar uma última «mudança radical» da fotografia, com «pouco mais de uma década» — a caminho da «pós-fotografia» que se anunciava no título de conferência que proferiu em Braga. Com a vontade de satisfazer a encomenda a contento, fazendo do eclético programa dos Encontros uma bandeira profética contra «a mística da verdade» fotográfica, vem A.R. dizer que «estão terminados o reino absoluto do instantâneo, a hegemonia da reportagem e a ideologia do 'momento decisivo' (Henri Cartier-Bresson» — como se tal «reino absoluto» e «hegemonia» esrtivessem disponíveis fora da sua cabeça para serem agora substituídos pelo «reino da ficção».
O disparate vai ao ponto de se escrever que «o 'flou', que é uma imagem do informe, é um dos paradigmas da criação fotográfica contemporânea». Ora se o 'flou' foi recuperado por alguns autores recentes (mas não enquanto «paradigma»), ele já era um velho processo quando alguns picturialistas o tomaram por bandeira; a «escola do 'flou'» foi um episódio de há um século e a «querela do 'flou' e do 'nítido'» ficou encerrada em muitas décadas de academismo salonista.
«A fotografia procura hoje afastar-se ostensivamente do real». Se se lembrasse da própria Histoire de la Photographie que co-dirigiu com Jean-Claude Lemagny (ed. Bordas, Paris, 1986), Rouillé não falaria de uma «relação tradicional que liga a fotografia à realidade» (nenhuma delas é estática nem a sua «ligação» alguma vez se congelou numa tradição única); aliás, a crença de que o real fora já fotografado na sua totalidade, esgotando-se o programa dos exploradores, topógrafos e arqueólogos que percorriam o mundo, já fora um dos argumentos do picturialismo.
Mas é o próprio A.R. que logo desdiz a ficção da «mudança radical» e considera que «o movimento actual constitui menos uma invenção do que um regresso», confundido a reapropriação actual de todos os processos, possível com a queda dos interditos modernistas, com a ideia igualmente preguiçosa de «regresso». A ideologia das rupturas, quando se divorcia do idealismo vanguardista para se tornar uma estratégia de gestão do mercado das artes, só pode sustentar-se da perda ou da ocultação da memória.
A encenação é tão velha como a fotografia (recorde-se Hippolyte Bayard) e Julia Margaret Cameron elevou-a a uma dimensão ficcional que marca o gosto de uma época mas não pode ser «ultrapassada». A confluência da fotografia com a ciência e com as «belas-artes» (depois com as artes plásticas ou, hoje, com a artes visuais, mudando os contextos tecnológicos, sociais e ideológicos) existe desde as primeiras experiências dos pioneiros — dos desenhos fotogénicos de Talbot às rayografias que Man Ray reinventou (pouco depois de Christian Schad e Moholy-Nagy), dos «quadros fotográficos» de Rejlander (32 negativos usados na alegoria The Two Ways of Life, 1857) às idênticas produções recentes. Não há regressos, nem o ritmo da evolução da arte fotográfica se presta à ficção de uma teleologia progressista. ste se desligue do possível valor de «prova» para ser inteiramente uma superfície fabricada.
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