EXPRESSO/ Cartaz de 15-5-97
Encontros da Imagem, Braga
Intimidades públicas
Há uma forte unidade temática nesta edição dos encontros de fotografia de Braga, em torno do quotidiano e das suas possíveis abordagens. As exposições parecem prolongar-se ou responder-se entre si, através dos diferentes espaços e lugares, acentuando uma um aspecto preciso, variando outra a atitude da observação, comparando-se ainda noutros casos olhares distanciados no tempo sobre um próximo tema. Recordando anos anteriores, notar-se-á também que o que agora é «O Imaginário do Quotidiano» — o espaço doméstico e íntimo, a festa, a rua, os transportes — vem secundar o que noutra passada edição foi especialmente atenção ao trabalho, e o que este ano é predomínio do enfoque documental sucede ao carácter ficcional e construido da generalidade das fotografias mostradas em 96. Para quem siga sucessivas edições, torna-se possível entender a fotografia na sua infinita diversidade, desdramatizando oposições de práticas e conceitos. E também observar que nenhum modelo de evolução linear da fotografia, importado do universo das artes plásticas, deve substituir o que é um «puzzle» permanente de autorias, géneros, direcções.
O real quotidiano começa no programa por ser a vida familiar e em especial os filhos pequenos, nas exposições associadas de Nicholas Nixon, Sally Mann e Gerrit Fokkema. Deixando o modelo do álbum de família, as crianças («Os Putos» — anos 30 e 40) de João Martins, nas imagens de rua certamente inéditas <não eram, como depois explicou a Emília Tavares numa oportuna monografia> propostas pelo Arquivo Nacional de Fotografia, e o quarto dos adolescentes no projecto de inventário documental de Adrienne Salinger, «In My Room: Teenagers in their bedrooms», dão-lhes sequência possível. Por outro lado, a nudez infantil, que é oferecida com um «glamour» certamente equívoco pela mesma Sally Mann (com a alegada mitificação de um paraíso rural americano), surge friamente retratada por Pere Formiguera, num projecto de registo cronológico sistemático que a montagem não chega a fundamentar, enquanto Michael von Graffendried visita um campo de nudistas na Suiça — outra vez a família, mas na tradição naturista dos «Friens of Light». Nu au paradis, com edição Falguière, Paris, prefaciado por Harald Szeeman e Charles-Henri Favrod, sucede a dois notáveis livros sobre o Sudão e a Argélia do mesmo autor (quotidianos de guerra para uma próxima edição).
O interior doméstico surge de novo com Nick Waplington, num trabalho que é dos mais fortes dos Encontros. A intimidade aceite do fotógrafo (sem nenhuma distância a a caucionar uma suposta objectividade do olhar documental) é a condição que torna possível um projecto que se serve do grande formato e do flash sem fazer congelar a presença dos seus modelos e personagens, cúmplices de um teatro-retrato social dos bairros pobres de Nottingham, expostos em provas de metro e meio. Aos casamentos e «parties» de Waplington sucedem-se as festas de anos do «Album de Família» de Bruno Sequeira: a instalação em caixas de luz de pequeno formato adequa-se aqui muito bem ao uso do flash e à publicidade dada à privacidade das imagens. Festas ainda, mundanas, entre mundos da moda e da cultura, nas provas de um preto e branco cortante, recortadas em quadrados, de Larry Fink.
Por aí se pode fazer a passagem à rua, ao desfilar de rostos anónimos, nos retratos roubados de Bruce Gilden, entre Nova Iorque e Tóquio. Outra vez o flash, usado muito próximo dos rostos, de certo modo monstrificados pela agressão do fotógrafo ou talvez pela violência da cidade, sublinhando assim o anonimato dos transeuntes e o fechamento de cada um sobre a sua privacidade vulnerável. De algum modo próximo é o curioso trabalho de Jean-Claude Palisse (Paris, 1951, de carreira feita na Bélgica) em «États d'Urgence»: grandes formatos quadrados onde as sombras se organizam em rostos que ocupam o primeiro plano e são retratos vagos entre outros vultos. Noutro lugar, os Encontros monstram um dos pontos mais altos de sempre da fotografia documental e de rua, numa colectiva da Farm Security Administration (anos 30 americanos). Entradas na colecção de Braga, as provas poderão (deverão) entrar em itinerância.
A intimidade presente nos objectos é outra direcção ainda, tomando-os como vestígios de narrativas suspensas, relíquias ou indícios de existências. Claude Vaujany fotografa a cores objectos deixados pela mãe, procurando neles uma intimidade perdida. Emanuel Brás fotografa pequenos cenários construídos (por vezes encontrados) que são também esculturas precárias na tradição de alguma fotografia surrealista dos anos 30. A série «Tocar no Tempo» é a revelação de um trabalho subtil, onde o tempo, a morte, o sentido indecifrável mas presente nas coisas anódinas surgem com uma inesperada densidade. Notar-se à o perfeito uso teatral da iluminação e ainda a grande qualidade das impressões a preto e branco.
Não seria difícil estabelecer as pontes entre o tema genérico e a obra de Sandy Skoglund, americana conhecida desde os inícios de 80 pelas suas instalações fotografadas (e também mostradas como instalações). Espaços fechados onde decorrem acções vulgares são transformados pela invasão de objectos, às vezes de animais, e pela cor uniforme e não-natural de uma pintura que pode sobrepor-se a todo o cenário e aos personagens que o habitam. Cada uma das suas peças fotográficas é a imagem de um mundo estranho, por vezes inquietante, onírico e obsessivo, pacientemente construído como um acidente ou mutação. As nove provas expostas, de diferentes datas e formatos, são uma aproximação aceitável a uma obra inclassificável.
De facto, se a coordenação temática traduz um propósito reflectido de programação e oferece pistas de informação e de trabalho, também parece certo que falta na abundância das exposições (24) o destaque de uma aposta mais poderosa, que aprofunde uma obra singular ou revele um autor desconhecido. Nixon teve a sua grande retrospectiva no Fotoporto de 90, em Serralves, e o intimismo da sua série «At Home» ganha muito mais sentido no quadro das suas principais direcções de trabalho, as fotografias de grupos e o trabalho sobre a doença, do que em pobre companhia. Larry Fink é uma presença regular em Braga e a sua mostra actual nada vem acrescentar ao trabalho de Social Graces (Aperture, 1984). Nick Waplington, mostrado através de «Weddings, Parties, Anything», ed. Aperture de 96, é um grande fotógrafo que prolonga o documentarismo social britânico, apresentado já em Braga nas obras de Martin Parr e Ann Fox. Mas este trabalho é de facto uma sequela de Living Room, de 91, de certo significativo pelo facto de revisitar a privacidade de uma mesma família, acompanhando crescimentos e mudanças de parceiros, mas sem a frescura e a inventividade que tinha o primeiro título.
2. A notícia prévia no EXPRESSO/Cartaz, secção "Actual" de 3-V-97
Outra vez o real
O programa da 11ª edição dos Encontros de Braga é mais extenso que nunca e também o mais descentralizado, com extensões a Guimarães (três núcleos no Paço dos Duques de Bragança, Soc. Martins Sarmento e Museu Alberto Sampaio) e também a Barcelos (Museu de Olaria), Póvoa do Lanhoso (Casa da Botica) e Vila Verde (Biblioteca Machado Vilela).
Continua a existir, no entanto, um lugar central dos Encontros, o Mosteiro de Tibães (a inaugurar hoje às 15h), onde se expõem nove fotógrafos — de um total anunciado de 24 autores e duas colectivas —, e há também um tema genérico, suficientemente vago para incluir diversíssimas obras. Mais do que de um tema tratar-se-á de um título, «O Imaginário do Quotidiano», com que se referem, por um lado, projectos onde a clássica distância da observação dá lugar à relação de proximidade com os modelos ou os ambientes fotografados, incorporando a vida pessoal do fotógrafo na obra mostrada, e, por outro, diversos projectos documentais sobre o quotidiano doméstico e o espaço social da festa, dos transportes públicos e da rua.
Depois da atenção privilegiada aos cruzamentos com as artes plásticas, depois da experiência da teatralização, do artifício e do simulacro, que outras edições anteriores privilegiaram, a oscilação das estratégias expositivas dá atenção a novas condições do realismo fotográfico (o «retorno ao real») e explora novos estilos documentais — «entre a arte e os media», para citar tópicos agora em voga.
Registo e construção da intimidade familiar são os retratos «At Home» (1980-88) de Nicholas Nixon, um dos fotógrafos da «Nova topografia» americana, de 1975, que foi apresentado no Fotoporto de 1990 por uma retrospectiva vinda do MoMA. E também as fotografias de Sally Mann, que usa os filhos como modelos, ou o projecto do espanhol Pere Formiguera, retrato sistemático e em estúdio de amigos e próximos.
Um novo documentarismo social que parte da intimidade do fotógrafo com o meio observado tem em Nick Waplington um bom exemplo. Weddings, Parties, Anything (Casamentos, Festas, Tudo), ed. Aperture, 1996, continua a acompanhar as duas famílias operárias de Nothingham, já conhecidas de Living Room. Da intimidade da observação passa-se à visita cúmplice aos espaços da privacidade adolescente com In My Room: Teenagers in their Bedrooms, da americana Adrienne Salinger (92-96, Chronicle Books).
A observação do quotidiano, da sociabilidade e da rua surge com Larry Fink, de regresso com «Hi Jinks on the East Coast», depois de se terem visto em Braga imagens de Social Graces e um trabalho sobre o mundo do boxe, e com Bruce Gilden (o autor do recente Haiti), fotografando os transeuntes em «Facing New York & Tokyo», exposto em Guimarães. Outro nomes: Gerrit Fokkema («Family), Steven MacLaurin («Lottery»), Nancy Honey («Southamton City Bus»), Jean Claude Palisse («Etats d'Urgence»), etc.
Mas o programa alarga-se ainda até à inclusão das famosas instalações fotografadas pela americana Sandy Skoglund, que poderiam ter feito parte da edição anterior, «Ficções e Narrativas». Ver-se-ão agora como espaços domésticos recriados pelo imaginário e invadidos pelos seus fantasmas.
Quanto a portugueses, os Encontros mostram jovens autores como João António Mota e Carlota Mantero, em Tibães, e também Gustavo Vicente, Emanuel Brás e Bruno Sequeira, no Museu dos Biscaínhos. Na vertente histórica, João Martins, fotógrafo de cinema e amador salonista (1898-1972), é apresentado pelo Arquivo Nacional de Fotografia com uma selecção intitulada «Os Putos» (em Guimarães).
Outras mostras a referir são ainda as de dois franceses bem situados na hierarquia dos poderes fotográficos parisienses: Denis Roche, também poeta e romancista («Il n'y a pas de leçon des tenèbres», em Tibães), e Alain Fleischer, cineasta e artista plástico («Happy Days», no Paço Ducal de Guimarães).
E por fim, sem esgotar o programa, duas colectivas descentralizadas: uma recorda o documentarismo «clássico» dos fotógrafos da Farm Secutity Admnistration, com obras de Dorothea Lange, Walker Evans, Jack Delano, Russel Lee e Ben Shahn, dos anos 30 (em Póvoa de Lanhoso); outra apresenta um projecto sobre Portugal («Viagem a Poente») da autoria de cinco espanhois, em Vila Verde.
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