18/5/2002
"Visões e olhares do mundo"
Um alargado panorama da diversidade da fotografia e a solidão como tema central dos Encontros
ENCONTROS DA IMAGEM 2002
Evgen Bavcar é cego, mas seria errado ver as suas fotografias apenas como uma inesperada proeza; há mais fotógrafos invisuais e muitos outros, afinal, vêem pouco, limitados pela cegueira simbólica. Dois acidentes antes dos 12 anos cegaram-no totalmente, na Eslovénia, onde nasceu em 1946. É filósofo, especializado em estética, investigador no CRNS em Paris e já teve um programa de Rádio onde falava de pintura. As imagens mostradas na Casa das Artes de Famalicão são uma síntese dos trabalhos que o consagraram a partir de 1987 e estão publicadas em L'Inacessible Étoile. Un Voyage dans le Temps (ed. Benteli, Berna).
Muitas das suas fotografias são feitas, e não «tiradas», em lugares totalmente obscurecidos, usando exposições prolongadas e focos de luz (lanternas) com que desenha no espaço e ilumina os corpos dos seus modelos ou os objectos que escolhe, controlando todos os dados da imagem. Depois orienta-se através das folhas de contacto graças às descrições feitas por colaboradores. É a partir da sua cegueira física que Bavcar fotografa, encenando a sua visão táctil, a memória das formas e o desejo de ver, mas as suas imagens oníricas desvendam-nos o sentido mais amplo do que é o imaginário.
A exposição inclui-se no núcleo «A Imagem Surreal» dos Encontros, mas esse rótulo fácil sobreviveu ao projecto malogrado de uma antologia dedicada à fotografia surrealista histórica na Fundação Cupertino de Miranda. Dele faz parte também Fran Herbello, um jovem fotógrafo com formação em escultura, de quem o Centro de Estudos Fotográficos de Vigo editou A Imaxe e Semelhanza. Trabalha com corpos humanos, esculpindo na pele intervenções efémeras, e o humor (mais ou menos cruel) das suas construções aproxima-o dos paradoxos visuais das esculturas fotográficas de Chema Madox, igualmente realizadas sem trucagens.
No núcleo «Fotografia e Património», destaca-se Eric Bourret, um jovem artista francês que expõe algumas «paisagens arqueológicas», que realiza desde 95. São imagens de grande formato, em impressões magníficas a preto e branco, de lugares monumentais (Egipto, Jordânia, etc.), que se desprendem da informação documental, transfigurando-se as formas, com a alteração das escalas e dos volumes, numa realidade enigmática, desenhada pelo tempo na superfície das pedras. Igualmente no Mosteiro de Tibães, o italiano Vasco Ascolini propõe a reinterpretação de esculturas e arquitecturas clássicas como presença de uma estranheza metafísica, e Augusto Lemos ilustra literalmente um itinerário de Leite de Vasconcelos com as qualidades fantasmáticas da câmara «pinhole».
Ainda de Vigo, que tem assegurado várias presenças históricas enriquecedoras (Virxilio Viéitez, Manuel Ferrol, Raniero Fernández), vem José Maria Massó, curiosa figura de industrial conserveiro e fotógrafo amador, presente com uma dupla exposição: por um lado, a documentação sobre a actividade piscatória e industrial na Galiza, encomendada a fotógrafos profissionais para edições publicitárias, transporta-nos a um moderno mundo operário já desaparecido, enquanto a produção própria de retratos familiares e as imagens dos lazeres burgueses dos anos 20 (com algumas excelentes provas «vintage» de formato 6x9) revelam um olhar fotográfico atento às direcções da «Nova Visão».
Um tema único, «Margens da Solidão», agrega as exposições que se mostram em Braga, numa alargada colectiva de projectos individuais nas imensas instalações ainda vazias do Museu D. Diogo de Sousa ou isoladamente em diversos espaços da cidade. É um percurso muito diversificado nas abordagens fotográficas e/ou artísticas - da reportagem jornalística de Klavdij Sluban sobre os campos de detenção para jovens na ex-URSS às recriações «plásticas» mais ou menos metafóricas encenadas por Irina Ionesco («Litanie pour une amante funèbre») ou Florence Chevalier («La Mort»), com extensão nos recentes «quadros fotográficos» de Manuela Marques e nas experimentações de José Luís Neto -, num programa construído como um inventário de situações extremas, que não poupa o espectador a rever-se no espelho da velhice, da doença, da alienação mental, do encarceramento (asilar, prisional ou monástico) e da morte.
Esta representa-se na série «The Omega Suites», de Lucinda Devlin, que foi incluída por Harald Szeemann na última Bienal de Veneza («Plateau of Mankind») e se expõe no Museu da Imagem. É um longo inventário de instalações onde a pena de morte é aplicada na América do Norte, com câmaras de gás ou de injecções letais, cadeiras eléctricas e até uma antiga forca, que se vêem em imagens desertas, sob uma iluminação uniforme e crua que as despe de qualquer dramatismo, com uma frieza laboratorial.
Em «Aborted» (2000), a alemã Gitta Seiler fotografa uma clínica para adolescentes em São Petersburgo, numa reportagem de pequenos formatos a cores marcada por delicado pudor. Philippe Bazin reúne em «Les Adultes Aliénés», de 1980-93, uma série de retratos de rostos frontais e próximos que nos mergulham nos mistérios da identidade (Thierry de Duve incluiu em «Voici» uma série recente de rostos de recém-nascidos). Marla Sweeney e Naomi Harris coleccionam retratos de velhos na irremediável solidão dos asilos, e Beth Yarnelle Edwards e Bert Teunnissen, em sucessivos inventários, percorrem os cenários domésticos do silêncio e do esquecimento. A finlandesa Elina Brotherus expõe em «Decisive Days» auto-retratos que encenam a intimidade dos estados de alma depressivos, em mais imagens da solidão.
Algo desviadas do tema, são uma agradável descoberta as fotografias de Jean-Jacques Dicker (Genève, 1944), grande viajante por África e pela Ásia que expõe na Casa dos Crivos. Os seus «Empty Rooms» são imagens de quartos de hotel africanos, de paredes coloridas, camas precárias e mosquiteiros brancos, em grandes formatos de uma serena tranquilidade, como pausas de um itinerário aventureiro, e completam-se com encontros com prostitutas em nus a preto e branco. Entretanto, Caroline Feyt (La Rochelle, 1965), na série «Portrait», de 92, fotografa vultos humanos como impressões desenhadas de novos fantasmas pictoralistas. São inúmeros os caminhos da fotografia.
Notícia prévia
11/5/2002
As imagens de Braga
16ª edição dos Encontros com extensões a Famalicão, Guimarães e Porto
Os Encontros da Imagem regressam com a sua regularidade anual (é a 16ª edição) e a sua organização temática, alargados de Braga a Guimarães, a Famalicão e, este ano, também ao Porto. A solidão, como é vivida nas cidades contemporâneas, a imagem «surreal», a fotografia e o património são os tópicos do programa. Até 9 de Junho. Em Braga concentra-se o núcleo «Margens da Solidão», com sede numa colectiva internacional exposta no Museu D. Diogo de Sousa que se prolonga por cinco lugares individuais: o holandês Bert Teunissen no Museu Nogueira da Silva, com «Domestic Landscapes»; a alemã Ulrike Jantzen, com «Loneliness behind the Bars», no Shopping Bragaparque; Jean-Jacques Dicker e os seus solitários quartos de hotel («Empty Rooms»), na Casa dos Crivos; Graça Sarsfield e «A Céu Aberto», na Torre de Menagem; Lucinda Devlin, no Museu da Imagem, com «Omega Suites», pesquisa dos lugares norte-americanos de execução e morte.
O Mosteiro de Tibães, que continua a associar os Encontros ao longo processo da sua recuperação patrimonial, acolhe uma retrospectiva do galego José Maria Massó (1899-1981), empresário conserveiro e fotógrafo amador, que se interessou por documentar o mundo da pesca e a sua indústria, a par de um registo do quotidiano familiar e social que se comparou às imagens de J.-H. Lartigue. Noutros espaços, o núcleo intitulado «Fotografia e Património» (previsto para Guimarães, mas deslocado por dificuldades logísticas) compreende uma mostra do paisagista francês Eric Bourret; «Noir Lumière», de Vasco Ascolini (Reggia Emilia, 1937), que sujeita lugares arquitectónicos a uma visão metafísica associável à pintura de Chirico; e «Cartas Transmontanas», de Augusto Lemos, evocações fantasmáticas de uma viagem de Leite de Vasconcelos, acentuadas pela câmara «pinhole». O núcleo completa-se no Museu Alberto Sampaio de Guimarães com «Senhora da Oliveira», de Estêvão Lafuente.
Ainda em Braga, outra colectiva continua a série anual de itinerários locais («Memória da Cidade»), com Mariana Viegas, Miguel Meira, Pedro Letria, Valter Vinagre, Sheila Barannigan e dois laureados com o Prémio Nièpce, Marie-Paul Nègre e Antoine d'Agata. E há mais exposições fora de tema na Galeria dos Coimbras, de Fulvio Mendes, e, na Gal. Mário Sequeira, em Parada de Tibães, de Jean-Baptiste Huyn (inaugura hoje às 18h). A extensão ao Porto inclui «Chile/Transição 80-01» no espaço Maus Hábitos.
Em Famalicão, com inaugurações no domingo às 15h, concentra-se o núcleo «A Imagem Surreal», que ficou diminuído com o cancelamento de uma mostra de «vintages» surrealistas, depois de Bernardo Pinto de Almeida ter abandonado a Fundação Cupertino de Miranda. As «Mitologias» de Ruth Thorne-Thompsen vão mostrar-se no Museu Têxtil; a Biblioteca Camilo C. Branco expõe as manipulações corporais do galego Fran Herbello, o futuro Museu do Surrealismo acolhe Maud Sulter («Syrca»). Dá-se o regresso das ficções alegóricas de Karin Knorr («Virtues and Delights») e Chema Madoz também está de volta, no Museu Bernardino Machado, enquanto a Casa das Artes apresenta o esloveno Evgene Bavcar, um fotógrafo cego.