Início do texto a publicar no volume que reunirá parte das comunicações realizadas durante o seminário Ag – Prata / Reflexões Periódicas sobre Fotografia, da Faculdade de Belas-Artes do Porto, e concretamente a propósito da sessão sobre o filme Olhar/Ver – Gérard, fotógrafo, de Fernando Lopes, SESSÃO 03 / 23 de Abril de 2008, Passos Manuel, Porto.
O filme (de 1998, em que participei) e o artigo do Fernando, de 1983, no Expresso, sugeriam abordar a relação entre a fotografia e o cinema, mas por aí há várias coisas a revisitar: a recepção cinéfila do livro Lisboa "Cidade Triste e Alegre", por Ernesto de Sousa e José Borrego na Imagem; a actividade de Augusto Cabrita, fotógrafo premiado desde 1950 no Barreiro e depois na câmara de "Belarmino"; a passagem de Gerard à crítica de cinema e o seu projecto de filme sobre forcados. Fica para outra vez
"Gérard Castello-Lopes: dos anos 50 aos anos 80 aos anos 2000…"
1. Foram animados os anos 80. Não se trata de saudosismo, mas de vincar como ao longo dessa década mudaram radicalmente, e sem retorno, as condições da prática e da circulação da fotografia, e também o respectivo entendimento. De facto, quando a Ether apresentou, a partir de 19 de Dezembro de 1982, as fotografias de Gérard Castello-Lopes que nunca antes se tinham visto e de cuja existência nada se sabia, a história moderna da fotografia em Portugal tinha começado a ser explorada nesse mesmo ano.
Esse passado recuperável – o de Fernando Lemos e o da dupla Costa Martins e Victor Palla - tornava mais credível o destino dos novos fotógrafos, que, pela primeira vez, construíam a sua obra no mercado profissional das exposições, como sucedia com os artistas plásticos, e não sucedera antes com nenhuns fotógrafos: a passagem da página impressa à galeria era então parte de uma evolução decisiva do próprio medium. Depois da decadência dos velhos salões de Arte Fotográfica, surgiam novas condições de visibilidade artística para a fotografia (os encontros, os “meses”, as festas), que já não se destinavam apenas aos amadores e a públicos especializados. Pelo final da década outros artistas desconhecidos dos anos 50 iam sendo revelados: António Sena da Silva (Ether 1987, Serralves 1990), Carlos Calvet e Carlos Afonso Dias (ambos Ether 1989). Tinham constituído um mesmo pequeno grupo informal e efémero.
O facto de Gérard Castello-Lopes, autor entre 1956 e 1963 de uma obra confidencial, voltar a fotografar logo em 1984, reatando em novas direcções uma carreira que não tinha tido, tornava mais evidente que os tempos eram outros. Muito rapidamente, e por mais duas décadas, ele ia passar a ser um dos fotógrafos mais presentes na cena nacional, duplicando esse papel com as suas conferências e ensaios. Em 1989 comemoraram-se os 150 anos passados sobre a divulgação da fotografia com a certeza de que o lugar desta no âmbito da cultura visual estava a mudar aceleradamente (algumas expectativas optimistas viriam, no entanto, a gorar-se no final da década seguinte, na área administrada).
2. Em Abril de 1982, por uma feliz coincidência, as fotografias de Fernando Lemos apareceram de surpresa na Sociedade Nacional de Belas Artes (a exposição “Refotos”), como um prolongamento oficioso do vasto programa retrospectivo dos anos 40 apresentado pela Fundação Gulbenkian, com uma dimensão que nunca mais se repetiu, e as fotografias de Costa Martins e Victor Palla que deram corpo ao livro Lisboa "Cidade Triste e Alegre" inauguravam a galeria da associação Ether – Vale Tudo Menos Tirar Olhos, dinamizada por António Sena.
Em “Os Anos 40 na Arte Portuguesa” as fotografias de Fernando Lemos eram as únicas referenciadas no catálogo (por sinal, era também “colaborador técnico” da iniciativa). No entanto, não se lhes reconhecia aí, ainda, qualquer autonomia disciplinar, ficando aparentemente incluídas na classificação artes gráficas, ao lado da pintura, escultura e desenho. Tratava-se apenas de mostrar um artista que usou a fotografia, não um fotógrafo. Tudo o resto ou não existira ou era apenas ilustração (a Exposição do Mundo Português fotografada por Mário Novais, por exemplo).
Fernando Lemos tinha exposto fotografias em 1952 por duas vezes, na exposição da Casa Jalco e numa individual na Galeria de Março. A sua recuperação, 30 anos depois, nessa exposição da SNBA e em momentos posteriores (a retrospectiva de 1994, na Gulbenkian), foi feita sob a égide do surrealismo e de Man Ray, sem se poder ver correctamente o que nessa produção tão breve como intensa era também revisitação de vários outros experimentalismos (Moholy-Nagy em especial) e já era informação actualizada sobre as muito contemporâneas orientações do movimento Fotoform e da Fotografia Subjectiva, das quais José-Augusto França se fazia eco em Portugal num texto depois “recortado” e nunca lido (1).
Simultaneamente, Costa Martins e Victor Palla eram redescobertos a pretexto do livro que editaram em 1959 e que tinham promovido no ano anterior em duas exposições em Lisboa e Porto destinadas a angariar assinantes para a sua publicação em fascículos – não se faziam então exposições de um tal género de fotografias, que se poderia dizer de ilustração ou reportagem, e se destinava apenas à impressão em magazines e álbuns. A fotografia artística que se expunha nos salões era outra coisa (sem ser monolítica), e o caso pioneiro – e muito mal conhecido ainda – da sua inclusão nas Exposições Gerais de Artes Plásticas de 1950 e 1955 (5ª e 9ª EGAP), com Keil do Amaral nas duas vezes, com Adelino Lyon de Castro na primeira, Augusto Cabrita e Victor Palla na segunda, entre outros expositores, não bastara para alterar a situação.
A exposição da Ether centrou-se na edição e no relançamento editorial de Lisboa "Cidade Triste e Alegre", que viria a tornar-se, passados mais vinte anos após a sua redescoberta (outro salto no tempo…), uma referência internacional da fotografia e do livro fotográfico da década de 50 - na revista do Centro Georges Pompidou, em 2002; em The Photobook I de Martin Parr e Gerry Badger, 2004.
Os seus dois autores, tal como o anterior Fernando Lemos, foram vistos como fotógrafos isolados e esporádicos, criadores de uma obra única ou de continuidade falhada, embora de facto eles tivessem voltado a fotografar e a expor. No caso de Victor Palla, mais activo como fotógrafo, uma retrospectiva em 1992, na Gulbenkian, apenas exibiu as fotos furtivas e de rua aparentadas com as do livro Lisboa…, deixando escondida toda a produção anterior e posterior em que ensaiou diferentes caminhos. Só em 2008 vieram à luz, no leilão do seu espólio, as fotografias experimentais dos primeiros anos 50 (realizadas em diálogo com Fernando Lemos e também com o movimento de Otto Steinert), ao mesmo tempo que se recuperavam retratos e outros estudos foto/gráficos de 1984 e 86, expostos nas Bienais do Avante (2).
Os casos de Lemos e de Palla indicam que, se a partir de 1982 se recuperou a visibilidade de fotografias entrevistas nos anos 50 e depois esquecidas, e igualmente de outras que não chegaram sequer a ser divulgadas, essas aparições mantiveram encoberto o contexto geral da produção fotográfica de que tais imagens se destacavam.
3 . continua
1 - J.-A. França, "Nota sobre 'Fotografia Subjectiva'", O Comércio do Porto, 10 de Março de 1953. O artigo foi parcialmente transcrito sem título no catálogo da retrospectiva de 1994 (F. Gulbenkian) e foi inventariado também sem título na bibliografia de Surrealismo em Portugal, Museu do Chiado, 2001 – a referência ao movimento de Otto Steinert tornava-se inacessível.
2 - Victor Palla, Auction may 29th 2008, catálogo de leilão monográfico, P4 Photography, Lisboa, com fotografias de 1951 a 1963, em provas vintage ou em reimpressões originais dos anos 80 e posteriores. No artigo “O olho quadrado”, publicado na revista A Arquitectura Portuguesa - e Cerâmica e Habitação, nº 6, Maio-Junho 1953, pp. 33-38, V. Palla escreveu sobre as fotografias de F. Lemos e aponta-lhes o destino do foto-mural e da integração na arquitectura.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.