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Expresso/ Actual de 09 Abril 2005
Uma ponte centenária
Cem anos de Die Brücke comemorados em Madrid- no Museu Thyssen
O ano de 1905 é apontado como a data de começo do século XX, quando se procura localizar com algum acontecimento preciso uma dinâmica de viragem no terreno das artes plásticas. A tradição francesa toma como início da era das vanguardas o escândalo desencadeado na imprensa à volta da sala que reuniu as obras de Matisse, Marquet, Derain e Vlaminck, no Salão de Outono de Paris, em Outubro; alertado a tempo, o Presidente da República recusou-se a comparecer à inauguração, e a polémica em torno da «jaula das feras» («la cage aux fauves») deu origem, como sucedera com o impressionismo, à designação de uma nova estética.
Poucos meses antes, precisamente a 7 de Junho, em Dresden, quatro jovens artistas - Ernst Ludwig Kirchner e Fritz Bleyl, arquitectos recém-diplomados, e Erich Heckel e Karl Schmidt-Rottluff, ainda estudantes - firmavam o «acordo fundacional do grupo de artistas Brücke» (Ponte), logo depois transformado em associação, com membros activos e sócios passivos que os apoiavam. À data, não eram mais do que quatro amigos determinados a vencer as recusas das galerias, mas o grupo iria rapidamente afirmar-se, já com os ecos do fauvismo impregnados pelas raízes culturais nórdicas, como o primeiro movimento expressionista alemão - em 1911 surgiria, em torno de Kandinsky e Franz Marc, o grupo Blaue Reiter (Cavaleiro Azul). O nome escolhido não identificava um programa, mas uma vontade de mudança: «Do que nos tínhamos de afastar estava claro; aonde iríamos parar, porém, era algo mais incerto», escreveu depois Karl Schmidt-Rottluff. Com uma muito provável influência do vitalismo filosófico de Nietzsche, para quem «a grandeza no ser humano é ser uma ponte, não uma meta».
O centenário de Die Brücke é assinalado em Madrid (até 15 de Maio) por uma exposição organizada pelo Museu Thyssen-Bornemisza e pela Fundação Caja Madrid, em colaboração estreita com o Brücke-Museum de Berlim, que será acolhida em Junho pelo Museu Nacional da Catalunha e em Outubro estará na capital alemã. Preparada desde 2001 com base no importante acervo de obras expressionistas do Thyssen, a mostra pôde contar com numerosos empréstimos do Museu Die Brücke e do Museu Nolde de Seebüll, na Silésia, tornando-se numa muito vasta apresentação das origens e do apogeu do movimento, de 1905 a 1913/14, ilustrados com 196 obras, que se distribuem pelos dois espaços das entidades organizadoras. Depois das grandes exposições «Analogías Musicales. Kandinsky y sus Contemporáneos», em 2003, e «Gauguin y los Orígenes del Simbolismo», em 2004, «Brücke. El Nacimiento del Expressionismo Alemán» é mais um passo de uma ambiciosa programação concebida por Tomàs Llorens que tem vindo a rever com cuidados científicos os primeiros anos da arte moderna, com próxima sequência na abordagem da crise das vanguardas dos anos 1920-30.
No museu mostram-se a trajectória e os temas preferidos pelo grupo inicial e pelos artistas que se lhe associaram por mais ou menos tempo (em especial Emil Nolde, Max Pechstein e Otto Müller), a partir do momento em que o movimento se consolidou como estilo colectivo e até se extinguir como associação nas vésperas da I Guerra Mundial. Os comissários Javier Arnaldo e Magdalena M. Moeller organizaram um itinerário temático em que se sucedem os espaços dedicados aos retratos dos artistas; à atracção pelo primitivismo de origem africana e polinésia, de que, sobre o trilho aberto por Gauguin, se alimentou o seu espírito de rebelião contra a ordem estabelecida; às cenas de espectáculos de circo e de variedades; aos nus ao ar livre, onde se traduzia uma relação com a natureza que se queria libertada dos tabus da civilização burguesa; depois aos interiores de atelier com modelos, em que se prolonga uma dimensão muito característica de trabalho em grupo e a ideia de fusão entre a arte e a vida; e, por fim, com a passagem dos membros de Die Brücke de Dresden para Berlim, em 1911, ao capítulo intitulado «Os selvagens na cidade», onde se iria romper a sua coesão estilística. Uma das questões levantadas por esta organização temática tem precisamente a ver com a identificação da vontade de afirmação de um estilo comum, quando se poderia supor que os princípios da expressão imediatista da excitação emocional e do temperamento individual de cada artista deveriam manifestar-se pela diversidade das suas obras.
Se aquelas são as imagens de marca do movimento, as suas obras mais conhecidas, onde se identifica a exaltação dos contrastes de cores ao serviço de uma vibrante expressão directa da vida, o percurso organizado em mais cinco núcleos no edifício da Caja Madrid é uma contribuição essencial para se conhecerem as condições de formação, as influências e as relações dos artistas do grupo no seu tempo e no quadro das orientações estéticas e culturais que então se agitavam.
Em 1905, com idades entre 21 e 25 anos, os quatro fundadores começavam por identificar-se com a linguagem gráfica da Arte Nova (Jugendstil, na sua versão alemã) e da Secessão vienense, como é evidente no cartaz que Fritz Bleyl desenhou para a exposição do grupo no ano seguinte. As origens simbolistas, a evolução do neo-impressionismo a partir de Nolde (que se lhes associa em 1906-07), as influências do japonismo marcam as primeiras experiências. Um segundo núcleo associa as pesquisas dos novos artistas com as ideias de reforma da sociedade pela cultura que percorria o centro da Europa, de que o naturismo e a libertação sexual são alguns aspectos. A admiração por Edvard Munch e a influência do suíço Ferdinand Hodler e de Paula Modersohn-Becker, falecida em 1907, cujos nus exprimiam uma nova consciência do corpo em relação com a natureza, são aqui exemplificadas.
Outro passo essencial é a atenção às consequências de uma exposição de Van Gogh em Dresden, em 1905, saudada com «entusiasmo frenético» pelos jovens artistas, que dele tomam a cor puramente subjectiva, animada por pinceladas vigorosas. Segue-se uma larga secção dedicada ao lugar essencial do desenho e da gravura, com relevo para a procura da espontaneidade da transposição da experiência visual, que se exercita nos chamados «nus de quarto de hora», contra a prática académica. Por fim, um capítulo dedicado aos exteriores rurais dá conta de uma pintura de paisagem que deixava de seguir a inspiração impressionista da fugacidade atmosférica das formas naturais, enquanto pesquisa especificamente pictural, para se transformar numa busca vitalista da natureza em regiões ainda quase não transformadas pela civilização, onde o ideal utópico da unidade entre a arte e a vida podia ser realizado sem limitações coercivas. Seguindo o modelo das colónias de artistas, as longas estadas estivais na costa do mar do Norte e nas ilhas do Báltico permitiam um outro encontro comunitário com o primitivismo, entendido como índice de autenticidade da expressão e do sentimento.
Aos anos terríveis da I Guerra Mundial, em que quase todos participaram como soldados, por vezes voluntários, seguiu-se a nova conjuntura artística criada pela frustrada Revolução de Novembro e mais tarde a perseguição nazi à «arte degenerada». Apesar do grande reconhecimento de que gozaram nos anos 1920, nenhum dos artistas de Die Brücke, salvo o caso excepcional de Nolde, manteria a energia criativa dos primeiros anos de juventude.
Fotos
Cartaz de Fritz Bleyl, 1906
Max Pechstein, «O Fato de Banho às Riscas», 1909
Ernst Ludwig Kirchner, «Rua de Berlim», 1913
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