EXPRESSO/Actual de 11-03-2006
Hayter e o Atelier 17 nos anos 30 parisienses
"Do sonho ao pesadelo"
"A Poética do Traço - Gravuras do Atelier 17, 1927-1940"
Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva (13 Janeiro - 9 de Abril 2006)
Arpad Szenes, «Le Dernier Combat», 1939 (buril)
Hayter não é um artista que arraste multidões, mas é uma referência obrigatória no universo da gravura e o seu nome encontra-se a cada passo quando se percorrem as biografias dos grandes criadores do século XX. Para além das suas contribuições para a história da gravura moderna, primeiro através da divulgação das técnicas de incisão directa em cobre, depois com o aperfeiçoamento de novos processos de impressão a cores, foram inúmeros os artistas que trabalharam nos seus vários estúdios, em Paris nos anos 30, em Nova Iorque, durante e depois da II Guerra, e de novo em Paris, a partir de 1950, todos eles designados pelo mesmo nome, Atelier 17.
A exposição dedicada a Stanley William Hayter (Londres, 1901 - Paris, 1988) concentra-se sobre o primeiro período parisiense, ilustrando um tempo marcado pela afirmação do surrealismo e o acumular das nuvens negras das crises que desembocam na Guerra de Espanha e na deflagração do conflito mundial. A par da sua própria obra gravada, representam-se em particular o trabalho de Arpad Szenes no Atelier 17 e, em conjunto, outros artistas que o frequentaram, como Picasso, Max Ernst, Masson, Tanguy, Hélion, Ubac, Vieira da Silva, etc.
Nascido numa família de pintores, Hayter instalou-se em Paris em 1926, depois de ter feito estudos de química orgânica e trabalhado três anos nos petróleos do Golfo Pérsico. Logo no ano seguinte monta um estúdio de gravura, que em 1933 transfere para o número 17 da Rue Campagne Première, em Montparnasse. Amigo de Giacometti, Balthus e Calder, faz a sua aprendizagem de gravador sob a influência do artista polaco Joseph Hecht, defensor do uso clássico do buril como instrumento de ataque directo da chapa de cobre. Ligado a Breton e aos surrealistas, presente nas suas exposições em Paris e em Londres, torna-se notada a colaboração com o poeta George Hugnet na edição de livros ilustrados e às suas primeiras exposições individuais somam-se duas mostras conjuntas com os artistas que frequentam a sua oficina, nomeadamente com Miró e Max Ernst em 1934.
Sem que a produção do Atelier 17 se identifique pela unidade programática, é patente nas obras expostas, para além da proximidade resultante do emprego das mesmas técnicas, a presença de referências e motivos estilísticos comuns que decorrem da conjunção da inspiração surrealista (o automatismo e uma figuração simbólica muito ligada ao interesse pela mitologia) com a linha pós-vanguardista da abstracção orgânica, num processo de síntese que constitui uma larga tendência dos anos 30 - a par da importância do «naturalismo freudiano» de Dalí no seio do surrealismo oficial e das várias afirmações realistas nacionais que respondem de modo mais explícito ao agravamento das tensões políticas.
Se a década é vivida sob um clima crescentemente dramático, que desde o «crash» bolsista de 1929 e a ascensão de Hitler ao poder em 33 aponta para a catástrofe inevitável, Paris é então um centro cosmopolita e dinâmico que serve de refúgio a inúmeros exilados, perseguidos na Alemanha como artistas «degenerados» ou regressados da Rússia após os anos de anarquia revolucionária. Arpad, vindo da Hungria, e Vieira da Silva, casados em 1930, integram esse ambiente artístico fervilhante, embora em condições de mercado extremamente difíceis, e também os meios da resistência política, em contacto, por exemplo, com o grupo comunista Les Amis du Monde.
A mobilização contra as ameaças dos fascismos e de apoio ao governo republicano espanhol é particularmente visível na produção de Hayter e do seu Atelier. Ela culmina com a edição de dois portfólios de gravuras, Solidarité e Fraternité, de 1938 e 39, em que participam Picasso, Miró, Tanguy, Masson e Kandinsky, entre outros, mas é já nítida na presença anterior de figuras de pesadelo e representações de guerreiros e combates, por vezes metaforizados por tauromaquias, como sucede numa gravura de Picasso, de 1937, o ano de Guernica. Hayter visita a Espanha no início da Guerra Civil e são particularmente impressivas as obras que resultam dessa viagem, Combat, de 1936, Défaite e Douro ou Ebro, de 38.
Mais do que a prática do automatismo psíquico puro, que o trabalho oficinal da gravura limita, a obra de Hayter cultiva um traço ondulante e nítido que define formas fechadas de teor figurativo mais ou menos explícito. Uma espécie de linguagem comum a vários artistas explora efeitos de metamorfoses em que se fundem referências vegetais e animais na definição de um lirismo visionário ao qual se associa o interesse pelos mitos clássicos e os bestiários fantásticos, abrindo-se depois às sugestões de pesadelo conformes ao dramatismo do tempo, num trânsito que Arpad ilustra com grande intensidade em Le Lion et le Taureau e Le Dernier Combat, de 1939. As teias e composições labirínticas de Vieira podem ser interpretadas no mesmo sentido.
Com o início da II Guerra, Hayter transfere-se para os Estados Unidos, entre a vaga de exílios dos surrealistas e de muitos outros estrangeiros de Paris. Ensinou gravura na New School for Social Research de Nova Iorque e recriou o Atelier 17, por onde passaram muitos dos novos expressionistas abstractos, como Baziotes, De Kooning, Motherwell, Pollock, Rothko e David Smith. Em 1944, o MoMA dedicou à produção do Atelier uma exposição itinerante que lhe assegurou ainda maior projecção. Já depois do regresso a Paris, Hayter interveio também directamente nos destinos da gravura em Portugal, graças a um curso que orientou na cooperativa «Gravura», em 1964, que a presente mostra recorda através de documentação da época.
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"50 Anos de Gravura Portuguesa - Uma Plataforma para o Futuro"
Sociedade Nacional de Belas-Artes
Expresso, Actual, 09-09-2006
São mais de 50 os anos da gravura em Portugal, mas a fundação da cooperativa Gravura, há meio século, continua a ser uma data de referência. 1956 foi um ano de viragem, com o 1.º salão dos «Artistas de Hoje» e a última das «Gerais», sobre mudanças políticas e geracionais que passavam a favorecer a diversificação estética (por sinal, num calendário muito diferente, foi em 1959 que surgiu em Espanha o movimento da Estampa Popular, orientado pelo realismo social). Durante 20 anos, como se viu na respectiva comemoração levada a cabo pela Gulbenkian, em 1976, foram passando pela Gravura as novas gerações de artistas - até à de Fernando Calhau, Julião Sarmento, Maria Beatriz (na foto, A Cantora, 1965, água-tinta), Vítor Pomar, etc. - e mantiveram-se vivas as diversas linguagens técnicas da gravura. Face a uma evolução posterior menos positiva (mas a gravura continua com artistas como Pedro Calapez e José Pedro Croft, entre outros), esta exposição evocativa junta algumas memórias e expectativas possíveis, nomeadamente as que se mobilizam em torno do atelier de Bartolomeu dos Santos em Tavira, onde foi inaugurada.
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