Expresso/Actual de 20/7/2002
"Academia de gravura"
Algumas presenças de primeiro plano numa antologia organizada com critérios antimodernos
(Walter Benjamin, ao tempo das suas reflexões sobre a reprodutibilidade técnica, não tinha informações sobre a longa tradição e a larga difusão da gravura de reprodução.)
«ANTOLOGIA DA GRAVURA EUROPEIA: DE DÜRER A GOYA»
(Palácio Galveias, até 25 de Agosto)
O título promete mais do que oferece a antologia, dados os limites práticos e os critérios de selecção, como reconhece a introdução do catálogo, e Goya não estabelece o seu fim cronológico; é uma destacada referência espanhola que se justifica pela origem da mostra, já que o acervo se prolonga até à entrada do século XX, mesmo que à primeira vista o não pareça. Diplomática, didáctica e académica, a exposição do Instituto Cervantes de Madrid inclui um razoável número de estampas de grande qualidade e de artistas de primeira ordem que justificam a visita, mas deve ver-se com alguma prevenção.
Voltada para a tradição da «grande arte» da gravura, a mostra privilegia o virtuosismo da execução, a habilidade e a paciência dos artistas gravadores, e faz uma clara opção antimoderna ao ignorar os processos litográficos que se afirmaram no início do século XIX. Toda a última sala é ocupada por versões de obras apareciadas nos salões oitocentistas, reinterpretadas em estampas editadas pela revista «L'Art», que então se fazia arauto de um renascimento da água-forte face aos novos meios de criação e reprodução das imagens, a litografia, a fotografia e os novos processos de edição.
A exposição (concebida e apresentada por Francisco Fernández Pardo) é itinerante e foi produzida por ocasião da presidência espanhola da União Europeia, chegando a Lisboa depois de passar por Paris, Bruxelas, Dublin e Tunis. É também de intenção didáctica, acompanhando as provas expostas com informações e exemplos sobre as técnicas da gravura, a apresentação dos seus instrumentos e vitrinas com lentes que permitem apreciar em pormenor as tramas gráficas que modelam o claro-escuro das impressões.
Através das peças expostas, a mostra fornece, até ao início do século XIX, algumas pistas sobre a história e o lugar da gravura no âmbito da economia visual, isolando-a como médium artístico (também suporte da doutrinação religiosa, pela presença da temática bíblica) dos outros usos sociais da reprodução das imagens, como a estampa científica, de difusão popular ou de intervenção política.
Médium de criação, de que servem os pintores que cultivam o desenho, trocando a grafite pelo buril, a gravura é também um sistemático veículo de reprodução iconográfica, através do qual se forneciam modelos aos artistas e se divulgavam as obras de arte junto de públicos alargados. A importância de um vastíssimo mercado de estampas instalado desde o século XVII, praticamente industrializado, reconhece-se nas inscrições existentes nas base das gravuras, publicitando os múltiplos intervenientes no processo de produção e distribuição: ao nome do autor da obra original somam-se os do gravador, do impressor e do editor, ainda com a menção eventual dos locais de venda. Walter Benjamin, ao tempo das suas reflexões sobre a reprodutibilidade técnica, não tinha informações sobre a longa tradição e a larga difusão da gravura de reprodução.
A mostra situa o início da história da gravura nas vésperas da invenção da imprensa, usando-se então a xilogravura (matrizes escavadas em madeira). Destaca depois a contribuição alemã para a generalização da gravura em cobre (a técnica do buril) e introduz, logo no século XVI, a invenção da água-forte, com amplo destino nos Países Baixos. A produção italiana, que inicia a reprodução gravada de obras de arte, tem uma presença mais escassa, com exemplos de Mantegna e Anibal Carracci, ou de Raimondi reproduzindo Rafael.
Durer é a figura central da grande escola nórdica da gravura, realizando a fusão da tradição gótica (Martin Schongauer) com as lições italianas: o desenho conciso e vigoroso dos seus Homens da Guerra mostra porque considerava a gravura uma «higiene» em relação à pintura. O holandês Lucas de Leyden é outra presença superior, antes que Rembrandt explore a água-forte com a máxima liberdade expressiva, com uma economia de meios e espontaneidade do desenho que ficaram como padrões insuperáveis. Entretanto, Antoon van Dick e Callot, Piranesi, mais tarde Goya, ao lado dos exemplos de virtuosismo de gravadores como Goltzius e outros pequenos mestres, sustentam um percurso que depois se perde na academização dos processos.
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