O leilão a favor da Abraço das fotografias desconhecidas de João Cutileiro é amanhã, dia 23, 5ª feira às 21h na P4. (Noto agora, por acaso, que este é o escrito ou "post" (?) nº 1001, desde 20 de Agosto de 2006)
Um fotógrafo "Pop" - Londres (e Lagos) dos anos 60
Se for preciso um rótulo, Cutileiro pode ser um fotógrafo Pop, como era próxima da Pop britânica a pintura de Paula Rego e de Menez.
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João Cutileiro fotógrafo
João Cutileiro expôs fotografias na sua primeira exposição, em 1961 (que foi a 2ª, contando uma em Monsaraz e Évora aos 15 anos, em 1951). Continuou sempre a fazê-las e, de longe a longe, a mostrá-las.
Além de escultor é fotógrafo, ou faz óptimas fotografias, em especial retratos. É mesmo um dos nomes certos da revolução fotográfica do final dos anos 50, ou é mesmo o primeiro fotógrafo dos anos 60 (1), e um dos poucos, um dos primeiros, que nesse tempo mostrou publicamente as suas fotografias.
Aliás, João Cutileiro até foi fotógrafo profissional, em Londres, já que encarou durante uns anos a fotografia como uma actividade que podia e devia ser remunerada, no caso de se tratar de prestação de serviços e resposta a encomendas, para além de fotografar por gosto amigos e amigas. Construiu assim uma galeria de retratos que fixou uma geração, ou duas, e deixou registados os tempos de liberdade em Londres (1955-1970).
Também foi e é às vezes um fotógrafo de esculturas, as suas.
(NOTA 1): Um dia alguém há-de explicar porque é que a história oficial do António Sena (Porto Editora, 1998) só dá uma linha e meia ao João Cutileiro, embora abra com ele, justamente, o capítulo VIII - "1960-1979 - Olhares inquietos e passageiros".
Começa assim a pág. 299 e o capítulo: "Em Novembro de 1961, João Cutileiro expõe algumas fotografias na sua exposição de desenhos e esculturas na SNBA." É pouco e mal, desde logo porque a exp. era de esculturas, fotografias e desenhos...
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Em Novembro de 1961, na Sociedade Nacional de Belas Artes, o folheto que acompanhou a mostra não trazia reproduções (o autor informa que eram praticamente todas retratos). Mas teve título: "25 Esculturas / Fotografias / Desenhos de João Cutileiro". Dos modernos ou novos desse tempo, tinham mostrado fotografias em exposições individuais de galeria só o Fernando Lemos (em 1952-53) e a dupla Victor Palla/Costa Martins (1958). Foi um pioneiro, portanto.
Um segundo passo público (publicado, neste caso) foi dado só dez anos depois (1971) com a impressão tardia de algumas imagens de Monsaraz (as mais antigas de 1959 e outras de 63, expressamente feitas) no livro do irmão José Cutileiro A Portuguese Rural Society (Oxford, Clarendon Press), onde se publicaram também outras fotografias do então desconhecido Gérard Castello Lopes (era conhecido como crítico de cinema em "O Tempo e o Modo", anunciava no Gambrinus o projecto de um filme sobre forcados e tinha cedido 30 fotografias para o pavilhão português da Exposição de Osaka, no ano anterior).
Aquelas fotografias documentais de João Cutileiro eram então antropológicas ou "neo-realistas" em sentido lato - mas os retratos de 1961 e os nus que agora se conhecem escapavam a todas as classificações. São fotografias do quotidiano pessoal, gestos de amizade e de amor, descobertas de corpos (explorações físicas antes de serem estudos de formas), momentos de vida antes de serem ou não arte.
Algumas daquelas imagens de Monsaraz e outras mais foram republicadas e expostas em 2005 e 2006 por iniciativa da Fundação PLMJ (Em Foco. Fotógrafos portugueses do pós-guerra, Obras da Colecção da Fundação PLMJ, ed. Assírio & Alvim, e mostra no Museu da Cidade, Lisboa, com catálogo próprio, em reimpressões digitais modernas).
Muitos mais anos depois voltou a expor por ocasião do Mês da Fotografia que aconteceu em Lisboa em 1993, e ficou sem continuidade. Foi na Galeria Valentim de Carvalho: "Memória (Fotografias inéditas - Colecção do autor)”. No catálogo geral publicaram-se dois notáveis retratos, um de Álvaro Lapa, 1958, outro de Maria Cabral e Vasco Pulido Valente.
Eram 100 fotografias "vintage", de 1958 a 1970, que à data não foram então acompanhadas por qualquer outra edição. O que sempre se lamentou, até porque além da importância dos retratos também os retratados tinham notoriedade própria.
“Memórias, retratos (inéditos) de amigos e familiares, 1958-70. As fotos foram-se perdendo pelas gavetas e pelas paredes (serviram até de alvo para setas), amareleceram e comeu-as o bicho. Juntas agora, traçam uma galáxia de relações, amizades e amores que vemos ao sabor das identificações disponíveis a cada um: Fernando Mascarenhas (em 65), Jorge Sampaio e Karin Dias, João Cid dos Santos, Francisco Keil do Amaral, Ana Viegas, Maria Cabral e Vasco Pulido Valente, Mário Cesariny (uma parede com seis fotos de 64), Menez (Londres, 63), Reg Butler, José Cardoso Pires (60), Ruy Cinatti, Gérard Castello-Lopes, etc, e um auto-retrato legendado «Paul Newman». Por vezes, as cabeças deixam adivinhar um olhar escultórico, a caminho de outros retratos (Helder Macedo, Azevedo Gomes, Keil do Amaral). Com os retratos de Lemos, tão diferentes, estas fotos privadas levantam um véu sobre um passado oculto, aqui apercebido como um tempo feliz. São pequenos grandes nadas.” (Expresso, 1993)
“100 fotografias que traçam um percurso de cumplicidades pessoais, mostradas em provas de época que transportam as memórias do seu uso (as paredes, os álbuns, o tempo) e um seguro valor de documento sobre os meios intelectuais do seu tempo. Mas é também a procura do sentido do retrato que nelas se encontra, na diversidade dos enquadramentos e das poses «colhidas do natural», ao mesmo tempo que o olhar do escultor se adivinha. Cutileiro mostrara fotografias numa exposição em 1961 e fez parte da geração dos «olhares inquietos» (António Sena) — foi mais um passo na recuperação de uma indispensável memória fotográfica.” (idem)
Um ano depois, a revista "Colóquio - Letras", que Joana Morais Varela coordenava e dava então atenção à fotografia, publicou oito retratos dessa exposição num desdobrável em extra-texto. Sophia de Mello Breyner Andresen, Ruy Cinatti *, Helder Macedo (64), José Cutileiro, João Cutileiro (em versão Paul Newman, com a Pentax), Mário Cesariny de Vasconcelos, José Cardoso Pires e Vasco Pulido Valente com Maria Cabral, não identificada, constituem essa galeria, marcada pela versatilidade e pela espontaneidade de quem usava a câmara em permanência. De Fernando Lemos a revista publicava 10 retratos de c. 1952 (também Sophia e também um auto-retrato). Ruy Cinatti, fotografado diante de uma janela aberta para o Tejo, era também fotógrafo, que encontramos em 1948 no 2º Salão do GPF (Nativa do Bali, não reproduzido no catálogo) e em catálogos do Museu de Etnologia.
Também uma dezena desses ou outros retratos foram publicados já em 2004 num livro de memórias de Londres de Luís Amorim de Sousa, Londres e Companhia, ed. Assírio & Alvim, aí se acrescentando um belíssimo encontro com Doris Lessing. Alguns também estiveram expostos no Centro Culturais de Cascais ("Memorabilia", com desdobrável, Nov.-Dez. 2005)
Entretanto, no Museu de Évora, em 1999, apresentou-se "Flores - Esculturas de João Cutileiro - Homenagem a Mapplethorpe". No catálogo publicaram-se 13 fotos suas de esculturas a preto e branco e de página inteira, sendo as do catálogo final de João Cutileiro Junior.
Das fotografias de flores de Mapplethorpe às flores construídas em mármores e bronze, a cores, somando-se imagens vistas às flores tiradas do natural, e depois refotografadas a preto e branco pelo escultor. Escultura de câmara - a pequena escala e a máquina de ver.
Por fim (até agora, e se não faltou mais nada pelo caminho), regista-se em Agosto de 2004, na Casa das Artes de Tavira, a exposição "Homenagem a Gustave Courbet", fazendo o título e as fotografias púbicas explícita referência ao precioso quadrinho intitulado A Origem do Mundo, desde 1995 exposto no Museu d'Orsay. Eram cerca de quatro dezenas de fotografias organizadas em conjuntos de imagens que colocavam a par flores, plantas e corpos de mulher, segundo disse Ana Ruivo no Expresso ("Herbário feminino").
A quarta exposição em perto de cinco décadas de fotografias está aí. Para se recuperar o tempo perdido. Os negativos desapareceram, as provas são em geral únicas e marcadas pelo tempo. Estão vivas.
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Exposições individuais:
"25 Esculturas / Fotografias / Desenhos de João Cutileiro", SNBA, 1961
"Memória", Galeria Valentim de Carvalho - Mês da Fotografia, 1993
"Homenagem a Gustave Courbet", Casa das Artes,Tavira, 2004
"Photographs by João Cutileiro - Vintage nudes from the 60s and 70s", P4 Art Gallery, Lisboa, 2008 (9-23 Outubro)
Publicações
Peter Fryer and Patricia McGowan Pinheiro, Oldest Ally. A portrait of Salazar's Portugal, Dennis Dobson, London, 1961. ("A southern Village", foto ass. J. de Souza; tb publ. em José Cutileiro, ..., 1971)
José Cutileiro, A Portuguese Rural Society, Clarendon Press, Oxford, 1971 - também com fotografias de Gérard Castello Lopes.
Colóquio - Letras, ed. Fundação Gulbenkian (dir. David Mourão Ferreira e Joana Morais Varela), nº 132/133, Abril-Setembro 1994 (8 retratos), p. 4-5 extra-texto. No mesmo nº, tb 8 retratos de Fernando Lemos.
Flores - Esculturas de João Cutileiro - Homenagem a Mapplethorpe, catálogo, Museu de Évora, 1999.
Luís Amorim de Sousa, Londres e Companhia , Assírio & Alvim, 2004.
Em Foco. Fotógrafos portugueses do pós-guerra. Obras da Colecção da Fundação PLMJ (dir. Miguel Amado), Assírio & Alvim, 2005, e catálogo de exp. colectiva, Fundação PLMJ - Museu da Cidade, Lisboa, 2006
Photographs by João Cutileiro - Vintage nudes from the 60s and 70s, P4 Live Auctions, Lisboa, 2008
Caro Alexandre,
Apenas uma nota para que o seu registo fique com ainda mais informação. As fotografias de João Cutileiro adquiridas pela Fundação PLMJ, em 2004, imprimiram-se digitalmente por opção do artista, que preferiu não ceder os negativos a um impressor profissional para que este realizasse tal trabalho. Em acordo com o artista, a Fundação PLMJ preferiu, então, não adquirir provas "vintage", para que estas permenecessem com o seu autor. A título pessoal, já na altura os retratos, em geral, e os nus, em particular - que vi, muitos, expostos nas paredes de casa do artista - me impressionaram bastante, mas o interesse da Fundação PLMJ recaíu mais na série de imagens de Monsaraz, próprias de um "neo-realismo" que se enquadrava nos propósitos aquisitivos de então, apostados em desenvolver um pequeno núcleo de obras do pós-guerra de sentido humanista. Sem dúvida que a produção fotográfica de Cutileiro merece mais atenção e espero que as entidades competentes envidem todos os esforços para que o seu conhecimento aprofundado seja uma realidade muito em breve.
Abraço,
Miguel
Posted by: Miguel Amado | 10/22/2008 at 16:56
Obrigado Miguel pelas informações e a colaboração. Sim, sei que o João Cutileiro é um admirador das qualidades da impressão digital. E um praticante, que como na escultura dispensa os acabamentos virtuosísticos. Também as suas provas antigas que viveram pelas paredes e gavetas têm assim mesmo, vividas (comidas pela gata, como sucede na exposição, ou alvo de setas), uma maior densidade objectual. O livro e a exposição Em Foco, da iniciativa PLMJ, ficaram como primeira aproximação colectiva ao pós-guerra e ao neo-realismo fotográfico, abrindo caminhos novos que têm ainda muito para explorar. Espero que as "entidades competentes" cumpram o seu papel, mas tenho mais esperanças nos coleccionadores exigentes.
Posted by: ap | 10/22/2008 at 18:15