Expresso Actual 2006 ?
"O Japão em mudança"
Continuidade e revivalismo da gravura em madeira
Kawase Hasui, «Ponte Kiyosu», 1931 (a primeira estampa da Colecção Robert O. Muller)
Uma história da arte do Japão (a de Miyeko Murase, por exemplo) pode terminar em meados do século XIX com a desaparição dos mestres da estampa gravada em madeira nos dez anos que se seguiram à morte de Hiroshige (1858), ao tempo das convulsões que provocaram a queda da ditadura militar feudal dos «shoguns» da família Tokugawa (1603-1868, Período Edo). Seguiu-se a Restauração Meiji e a modernização do país seguindo o modelo ocidental. A abertura dos portos em 1853 sob a pressão duma esquadra americana e o início do japonismo nas exposições universais de Londres (1862) e Paris (1867) são referências a ter em conta.
Em desaparição com a mudança do Japão a arte do «ukiyo-e», «imagens do mundo flutuante» ou «imagens de Edo», o antigo nome de Tóquio, viria a surgir depois sob a designação de «shin-hanga» (nova gravura) uma forma de revivalismo que se destinou essencialmente a coleccionadores ocidentais, com base na longa actividade do editor Watanabe Shozaburo (1885-1962). São obras das últimas décadas do século XIX e da primeira metade do seguinte que se mostram no Museu Gulbenkian (na companhia de algumas estampas clássicas da colecção do fundador). Vinda de um dos núcleos da Smithsonian Institution de Washington (a Arthur M. Sackler Gallery), como um presente por ocasião do 50.º aniversário, é uma selecção representativa da colecção doada àquela instituição por Robert O. Muller (1911-2003), o maior coleccionador - e negociante - ocidental de gravura japonesa moderna, também responsável pela criação deste nicho de mercado.
As gravuras japonesas que seduziram os impressionistas (com Utamaro, Hokusai e Hiroshige como nomes maiores) foram por muito tempo uma produção de largo consumo desprezada como uma arte plebeia pelos eruditos japoneses. A descoberta ocidental é praticamente simultânea do início da sua decadência, por efeito da divulgação da fotografia e dos progressos das técnicas de impressão, suplantando o laborioso processo artesanal de produção das estampas que envolvia a intervenção de quatro profissionais especializados: o artista desenhador, o gravador, o impressor e o editor. E, em especial, devido à transformação do tecido social estratificado da era Edo com que se identificava a sua iconografia principal, as mulheres dos «bairros de prazer» e os actores do teatro Kabuki.
Kobayakawa Kiyoshi, «Embriagada», 1930
É pelas «Presenças em Palco» que se inicia a mostra, na continuidade da tradição do «ukiyo-e», ainda no tempo do imperador Meiji e nas décadas posteriores, com cenas de representações teatrais e retratos de actores. Já em «Personificação da Beleza», conjuga-se a expressão nostálgica da beleza feminina associada a um discreto erotismo tradicional, no caso de Hashiguchi Goyo (1880-1921), com a novidade da representação da mulher moderna, por parte de Kobayakawa Kiyoshi (1930) e Ito Shinsui (1953). Notando-se uma crescente abertura a influências ocidentais, da pintura de Salon e do gosto Art Déco, a representação da mulher não deixa de se associar às anteriores convenções morais.
Outro capítulo do catálogo tem o título «Valores da Luz» e aí se encontram curiosos registos da aparição da tecnologia moderna (o comboio e o automóvel, a iluminação eléctrica) na paisagem, por parte de Kobayashi Kiyochika (1847-1915) e de Kawase Hasui (1883-1957), o primeiro artista/artesão a ser proclamado pelo governo japonês como Tesouro Nacional Vivo.
Face à ilusória permanência de um «mundo de sonho» reservado a amadores de arte, outras imagens impressas, a fotografia, o cartaz, a ilustração e a banda desenhada seguiam entretanto os caminhos do testemunho, da interpretação ou da denúncia da realidade. Esse confronto com o presente seria positivo.
«Mundos de Sonho»
Gravuras Japonesas Modernas da Colecção Robert O. Muller
Museu Gulbenkian, até 7 de Janeiro
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