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EXPRESSO/Actual de 12-03-2005
Diálogos americanos
Stieglitz em Madrid. O fotógrafo e o agente artístico: «Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)», no Museu Rainha Sofia
Às duas grandes exposições da agenda de Madrid, uma centrada na figura do fotógrafo, editor e galerista nova-iorquino Alfred Stieglitz (no Museu Rainha Sofia até 16 de Maio) e outra dedicada ao centenário do grupo expressionista alemão Die Brücke (Museu Thyssen, 15 de Maio), veio juntar-se esta semana uma grande mostra de desenhos de Dürer vindos do Museu Albertina de Viena (Museu do Prado, 29 de Maio). É uma conjunção rara em qualquer capital, a reafirmar o poder de um centro cultural que ultrapassou a sua área peninsular de influência.
«Nova York e a Arte Moderna - Alfred Stieglitz e o Seu Círculo (1905-1930)» toma como ponto de partida a inauguração da galeria - The Little Galleries of the Photo-Secession - que fundou num pequeno prédio com o nº 291 na 5ª Avenida, com o também fotógrafo Edward Steichen (1879-1973), que viria muito mais tarde a dirigir o departamento fotográfico do MoMA e a organizar a muito discutida exposição «The Family of Man» (1955). Essa opção cronológica deixa em parte na sombra a carreira anterior de Stieglitz, que se integrara, desde os anos 1880, nos círculos da fotografia picturialista europeia, em crescente sintonia com as correntes simbolistas. Ainda que a sua obra pessoal, pelo predomínio do olhar fotográfico face às manipulações picturais e pelo interesse nas abordagens naturalistas da paisagem e das figuras, não exprimisse a ambição visionária do simbolismo mais extremo, é esta a orientação dominante tanto dos fotógrafos da Photo-Secession, que Stieglitz reúne em Nova Iorque em 1902, como dos primeiros anos da revista «Camera Work», que dirige de 1903 até 1917, e também da galeria, que ficou conhecida pelo número 291 e encerrou no mesmo ano devido às dificuldades da I Guerra Mundial.
Em 1908, Stieglitz faz escândalo ao expor os desenhos eróticos de Rodin e desenhos e esculturas de Matisse, a que se seguem as primeiras apresentações na América de Cézanne, Picasso e Brancusi, antecipando o grande choque cultural que foi a exposição do Armory Show (1913). Ao mesmo tempo, começava a apresentar artistas americanos dos meios vanguardistas de Paris, como John Marin, Max Weber, Marsden Hartley e Arthur Dove, a que se junta, já em 1917, a jovem pintora Georgia O’Keeffe, com quem viria a casar. Toda essa abertura de Nova Iorque às revoluções da arte moderna é em geral documentada na exposição através das próprias obras expostas e coleccionadas por Stieglitz.
Ainda que a «Camera Work» e a galeria 291 continuassem, cada vez mais esporadicamente, a mostrar os grandes nomes do picturialismo, como Steichen, o barão Adolf de Meyer, Clarence White e Gertrude Käsebier, Stieglitz vai-se desligando dos meios fotográficos e volta-se para os artistas mais inovadores, sob a influência de Max Weber e do caricaturista e escritor mexicano Marius de Zayas. Embora muito influente, essa sua aproximação às novas tendências é, em geral, ainda moldada por um modelo esteticista de inspiração simbolista que o leva a entender o cubismo como caminho para a abstracção, aceitando esta por analogia com a música e vendo a arte como expressão do «élan vital» bergsoniano e do eu profundo de cada criador.
Entretanto, Stieglitz começara a modificar a sua obra pessoal numa direcção mais ancorada no real, ainda que continuasse a rejeitar as orientações do realismo social de um Lewis Hine (bem como a pintura reformadora e antiacadémica de Robert Henri e John Sloan). Fotografa a transformação arquitectónica de Nova Iorque e defende através da «pureza» dos processos da fotografia «straight» uma nova concepção formalista da autonomia do médium. No último número da «Camera Work» publica a obra de Paul Strand como expoente desse novo modernismo fotográfico, ao mesmo tempo que inicia a série admirável de retratos de Georgia O’Keeffe. Num percurso sempre surpreendente, a sua última fase reencontrar-se-ia com uma perspectiva simbólica da abstracção, em séries de fotografias de nuvens de analogia musical, «equivalentes» a uma identificação espiritualista com a natureza. Como galerista (The Intimate Gallery e An American Place), ao longo das décadas de 20 a 40, Stieglitz passou a apresentar apenas artistas norte-americanos, numa busca da «americanidade», antieuropeia e distante das mutações trazidas pela Grande Depressão, que viria a ser uma das raízes da abstracção expressionista dos anos 50.
Entre estes dois períodos, diferentes mas unidos por uma subterrânea coerência idealista, Stieglitz foi uma das figuras da agitação protodadaísta em Nova Iorque, em cumplicidade principal com Picabia e Duchamp (para quem fotografou a famosa Fonte assinada por R. Mutt). Esses anos de efervescência cosmopolita que se seguiram ao Armory Show e ao início da I Guerra Mundial, num tempo de radical mudança do mundo, são outro dos grandes capítulos desta extensa e sempre surpreendente exposição.
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