Os novos artistas de Maputo
publicado por ocasião da Arte Lisboa 2008
Foram convidados a vir à Arte Lisboa em 2004, quando a feira da FIL tentou afirmar-se como plataforma para a circulação de artistas do mundo lusófono, além de ser a montra nacional de um país periférico. Agora quiseram regressar porque Lisboa pode abrir mais uma porta para passarem fronteiras e porque o balanço das actividades tem sido positivo. O Muvart não é uma galeria no sentido habitual. É um movimento de artistas contemporâneos de Maputo que precisam de construir eles mesmos os lugares e a oportunidades para mostrarem trabalhos inovadores. Seis anos depois do seu manifesto e após várias exposições colectivas com formatos variáveis, para além das individuais e de algumas oportunidades exteriores, eles mudaram o panorama das artes de Moçambique. Este é ainda um país em construção, depois de muitos anos de guerra civil e poucos de uma independência longamente conquistada. Não tem petróleo nem diamantes que permitam ir mostrar colecções de arte a Veneza, ou montar bienais internacionais. Mas, no caso muito particular de Moçambique, um povo pobre de recursos não é o mesmo que um país sem arte, muito pelo contrário.
Vieram dos anos coloniais um “skyline” que lembra Nova Iorque, uma arquitectura moderna com imaginação própria (em especial a de Pancho Guedes), uma produção artística plural, projectada pelo nome de Malangatana e continuada com outras figuras reconhecidas, para além dos vastos caminhos do artesanato já urbanizado e da exploração do exotismo para consumo de cooperantes e turistas. Em Maputo, a arte está na rua, literalmente, nas paredes pintadas e nos expositores dos ambulantes, está nas oficinas do Núcleo de Arte (Estêvão Mucavele, Titos Mabota, por exemplo) e entrou em versão já cosmopolita nas escolas e no museu, o Musart. Os novos artistas vieram agitar uma ordem estabelecida em torno de “estilos moçambicanos” que lhes pareciam demasiado complacentes.
Os artistas do Muvart tiveram de pôr em causa a ideia do criador autodidacta e “naïf”, que continua a estar associada à arte africana, e de cortar com o predomínio da pintura de cavalete, que foi, aliás, uma tardia contribuição da modernização colonial: passaram à acção, à instalação, à interacção com o público para despertar consciências. Vieram colocar o problema da transição entre a improvável continuidade de uma criação artística de raízes mais ou menos tradicionais ou “primitivas” e um futuro que se constrói com um universo crescente de população escolarizada e com aprendizagens artísticas feitas em contacto com a contemporaneidade internacional. Como disseram no manifesto inicial de 2002, “o Muvart reivindica a capacidade dos artistas moçambicanos participarem na arena internacional, não como um simples espelho de uma África congelada dentro das suas tradições, mas como testemunho do mundo de hoje, a partir de riquezas humanas únicas”.
A consciência da ruptura afirmou-se com as formações universitárias em diferentes lugares do mundo (por exemplo, escultura no Rio de Janeiro no caso de Jorge Dias, n. 1972; pintura mural em Kiev e produção cultural na Sorbonne quanto a Gemuce, n. 1963 – entre outros itinerários). E antes com as formações médias na Escola Nacional de Artes Visuais (em especial no curso de cerâmica), a que vários têm voltado como professores. A recusa dos estereótipos de uma arte africana originária ou espontânea (tantas vezes associada à figura do mágico) não impede que os artistas se reencontrem com expressões figurativas, com materiais ou objectos, e com temas presentes em práticas tradicionais. De facto, a reflexão sobre a identidade - como ser artista hoje, como ser mulher, como ser africano, etc - pode adoptar referências a manifestações culturais locais, ao mesmo tempo que se expressa através de linguagens e conceptualizações actuais.
Anésia Manjate (n. 1976) partiu da cerâmica para a instalação de objectos populares apropriados e para a pintura objectual, com o projecto de construir pontes de reflexão sobre as questões do feminino entre a cultura Changana e o contexto de um mundo globalizado. Celestino Mudaulane (n. 1972) partilha-se entre a escultura em cerâmica e um desenho que cresce em painéis de dimensão mural, onde se interrogam ritos antigos e o presente político do país. Com Ivan Serra, vindo do design, são as linguagens mediáticas que se usam para tomar partido sobre o quotidiano. Pinto faz um desenho pulsional, automático mas atento ao mundo envolvente. Gemuce ora ilustra um delicado mundo ficcional alternativo ora transporta a ordem social para o espaço da arte. Jorge Dias, animador e teórico do grupo, é também um inventor de objectos e situações de comunicação. Não existe um estilo comum, mas sim um colectivo em que se trocam e potenciam as experiências de todos.
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