"Mesas pintadas"
Expresso Revista de 19 Abril 2008
Colaboração numa edição dedicada à gastronomia
(versão incompleta de 18 de Abril - actualização posterior)
Annibale Carracci, O comedor de feijões (The Beaneater)
Não é como ícones da gastronomia que nos lembramos da Última Ceia de Leonardo da Vinci, do Déjeuner sur l’Herbe de Edouard Manet ou, para incluir um exemplo nacional, do Almoço do Trolha, de Júlio Pomar. A maioria das refeições vistas em pintura não tem a ver com as artes da mesa, mas com a importância da alimentação na vida quotidiana. O que naqueles casos interessa, como em muitos outros, é o significado de uma situação convivial ritualizada, a sugestão de outras sensualidades, a crítica das desigualdades sociais. Mesmo quando a arte mais se aproxima da ilustração de virtudes gastronómicas, em muitas naturezas-mortas do período barroco, a imagem pintada pode dar a ver, para lá do que expressamente mostra, mensagens moralizadoras sobre a gula ou a fugacidade da vida (as “vanitas”), um emblema de desafogo material ou a demonstração do virtuosiosmo do artista. Uma imagem conseguida é sempre um abrir de caminhos.
As uvas pintadas por Zeuxis confundiam os pássaros e foram um mítico exemplo da verdade da ilusão que a pintura pode ser (o “trompe-l’oeil”, engano do olhar). Os prazeres e perigos dessa ilusão inquietaram os moralistas e agitaram os iconoclastas, tentando-se que o ”espiritual na arte” (Kandinsky) se substitua ao natural, ou que a observação dos temas e a das formas enquanto coisas se troque pela atenção abstracta às revoluções formais. A figuração da gastronomia é assim um tópico pouco abordado.
Interrompida a tradição grega e romana dos motivos profanos na decoração das casas dos poderosos, teve de esperar-se pelos conflitos da Reforma para se multiplicarem os quadros que ilustram, louvam ou denunciam os prazeres da mesa. Calvino condenava as imagens da divindade, mas disse que “a arte de pintar e de talhar são dons de Deus”. A interdição dos ídolos abria assim novas portas ao mercado crescentemente democratizado pelo público burguês: multiplicaram-se as cenas do quotidiano (os mercados, as tabernas, as cozinhas e os comensais, na área temática que nos interessa) e as vistas de coisas inanimadas (“almoços” ou refeições servidas, quadros de frutas, de peixes, etc). Foram um recurso e a especialidade dos pintores nórdicos, mesmo antes de surgirem termos técnicos como “pintura de género” e natureza-morta, nos degraus inferiores da hierarquia académica.
Na história bíblica, as bodas de Canã e a ceia em Emaús autorizavam que as virtualhas expostas ganhassem uma riqueza que a representação de outros episódios não permitia. O holandês Jan Vermeyen, Tintoreto e Veronese em Veneza, quanto ao primeiro tema, Caravagio, quanto o segundo, deram um empurrão decisivo à natureza-morta, que faz valer os objectos por si mesmos dispensando o contexto narrativo. A oferta profissional vinda do Norte juntava-se à resposta realista de Annibale Carracci (O Comedor de Feijões, os dois talhos da família em Bolonha), face ao curso maneirista da pintura, numa inédita aproximação à vida quotidiana e à materialidade das coisas.
Pieter Aertsen e o sobrinho Joachim Beuckelaer inverteram a relação de escala entre as personagens e o cenário, dando quase todo o espaço aos balcões do mercado ou da cozinha, numa exibição luxuriante das prodigalidades da natureza (e do Criador). Pintor e estalajadeiro, Jan Steen foi o observador divertido e moralizador do que se passava sobre e à volta da mesa. Frans Snyders e Wilhelm Claes Heda levaram a natureza-morta a extremos de luxo e subtileza.
A expansão do género foi fulgurante na Europa e teve em Espanha o exemplo dos “bodegons” de Sánchez Cotán, que logo no início do séc. XVII conferiu à imitação da natureza uma eficácia mística. Em Portugal, destaca-se Josefa de Ayala, ou de Óbidos, e em especial o seu pai, Baltazar Gomes Figueira, consagrado há poucos anos pela truta pertencente ao Louvre. De Josefa destacam-se as exibições de doçaria conventual acompanhadas por codificadas sugestões metafóricas.
Já no século XX, Pierre Bonnard (1867-1947) representou refeições domésticas com um intimismo incomparável. Ao pintar a mesa familiar e também a mulher no banho, fundia realmente a arte e a vida, como pretendeu [depois] a retórica das vanguardas. Instalou a arte no próprio espaço privado do quotidiano, vivendo-a com uma sensualidade discreta mas intensa e sem sentimentalismo algum, alimentando-a com a audaciosa pesquisa plástica sobre o espaço e a luz que prosseguiu até ao fim.
Chain Soutine (1893-1943), chegado da Lituânia a Paris em 1913, usou obsessivamente alimentos como motivos da natureza-morta, para além de deixar alguns retratos de cozinheiros e empregados de restaurantes. Era uma relação inquieta e torturada, que se associa tanto à fome e à luta contra os interditos do seu meio judaico de origem como à miséria que conheceu no início da carreira. Quando os recursos melhoraram, a úlcera de estômago que o matou impunha uma dieta de batatas cozidas, sopa e leite, proibindo-lhe os coelhos, as aves e os peixes dos seus quadros. Por vezes eram modernas revisitações dos modelos maiores: a carcaça de boi de Rembrandt (que interessou também Bacon), a raia de Chardin, as trutas de Courbet – alimentos crus que são alegorias da pintura e da gastronomia.
Mais perto de nós, Wayne Thiebaud (1920, Mesa, Arizona) pinta desde 1961 montras e balcões de doces, “pies”, gelados e “delicatessen”, para além de ser o extraordinário paisagista das ruas de São Francisco. Associável à Pop, passa o mundo do “fast food” e do consumo de massas do cartaz à pintura, com a luz de neons frigoríficos e cores ácidas. Para não esquecer a fotografia, há que citar Irving Penn (“Objects for the Print Page”, visto em Serralves em 2000) e Martin Parr.
Cristo em casa de Marta e Maria, 1565, 113 x 163 cm, Museu de Arte Antiga, Bruxelas
Frans Snyders (1579-1657), A peixaria, 202 x 337 cm, Museu Real de Antuérpia
Joachim Beuckelaer, O mercado de legumes, 1567, 149 x 215 cm, Museu Real de Antuérpia
Velazquez, Crista na casa de Marta e Maria, c. 1618, National Gallery, Londres
Gostei do texto e so' tenho pena de nao ter acesso ao resto... no entanto espero poder em breve fazer uma arqueologia nos semanarios de casa.
Gostava so' de partilhar uma observacao que fiz das imagens que o Alexandre disponibilizou.
De certa forma parece que nao e' apenas de comida que elas tratam, embora 'a partida seja essa a sua funcao. Reparo que os papeis sociais do homem e da mulher tambem aparecem demarcados - as mulheres na cozinha a tratar da confeccao dos alimentos (ou mesmo no mercado, a trabalhar), enquanto os homens os apreciam ou usam o motivo da refeicao para discutir "assuntos importantes" (ou tem um trabalho aparentemente mais "facil").
Tambem e' curioso como uma mesma cena tem interpretacoes diferentes, de acordo com o seu autor - "Cristo em casa de Marta" ora e' tratado com uma certa submissao (e ate'alguma "satisfacao" em assumir a sua funcao) por parte das mulheres no seu papel de cozinheiras (na figura acima), ora com uma certa dificuldade em assumir esse mesmo papel, como no caso da pintura de Velazquez (ainda que pareca nao haver uma esperanca em mudanca, visto que e' a mulher mais velha que parece estar a dar indicacoes 'a mulher mais jovem, que claramente mostra um certo descontentamento).
O tema e' aparentemente banal, as imagens sao de pinturas antigas (um quotidiano temporalmente longinquo), mas as implicacoes que podem ser extraidas de uma analise mais cuidada das imagens sao bastante actuais.
Posted by: Pedro dos Reis | 04/30/2008 at 02:57