3/11/2001
Incitação à revolta
A colecção histórica do Museu do Chiado continua invisível
NOVAS AQUISIÇÕES E DOAÇÕES 2000-2001
(Museu do Chiado, até 20 de Janeiro de 2002)
Poderia haver motivos de regozijo. O Museu do Chiado está a apresentar as obras que comprou ou lhe foram oferecidas nos anos de 2000-01. Ficamos a saber que, apesar da escassez de meios do Instituto Português de Museus, algum esforço se tem feito para enriquecer as colecções nacionais, em parte graças aos fundos comunitários do Programa Operacional da Cultura. Igualmente depreendemos que a actividade do museu e do seu director têm conseguido motivar a generosidade de artistas e de particulares, em especial no caso dos autores a quem foram dedicadas exposições monográficas, como sucedeu com Jorge Vieira, Joaquim Rodrigo e Vespeira.
São particularmente relevantes a doação de nove provas «vintage» de Fernando Lemos por Marcelino Vespeira, que, após algumas mostras preguiçosas de reimpressões recentes, dão a ver a realidade material (e as dimensões) das suas fotografias de 1949-52, bem como a aquisição de um núcleo consistente de obras de Lourdes Castro, da «assemblage» de objectos recobertos de tinta prateada, de 61, até aos lençóis bordados de 70.
Depois de reinaugurado o antigo Museu Nacional de Arte Contemporânea como Museu do Chiado, em 1994, sucessivas declarações oficiais atribuíram-lhe um horizonte que se encerrava nos anos 50, devido aos compromissos assumidos com a Fundação de Serralves. A seguir à inauguração do museu do Porto, passou a ser possível considerar o prolongamento da colecção do Chiado para as décadas seguintes e o actual Governo até se comprometeu a alargar substancialmente as suas instalações.
Se essa ampliação continua a ser só uma promessa, o programa de aquisições em curso é já a concretização desse novo programa. Um passo em frente, portanto, sejam quais forem os gostos por demais idiossincráticos e sectários do respectivo director - mas esse é um tema que nos desviaria da questão central. Uma colecção pública é a soma dos sucessivos critérios dos seus responsáveis, incluindo os Eduardo Malta de cada época, embora em países mais avisados (vejam-se, ao pé da porta, o Prado e o Rainha Sofia) a arbitrariedade pessoal seja temperada por conselhos com idóneas participações.
Mais forte que o regozijo é, porém, o sentimento de revolta.
Apresentar as novas aquisições e doações em todo o espaço útil do Museu do Chiado, em vez de, como esteve antes previsto, o fazer apenas nas galerias de exposições temporárias, em paralelo com a reposição da sua colecção histórica e em duas ou três montagens sucessivas, é um acto de guerrilha entre entidades com intervenção na área da arte contemporânea (o respectivo Instituto e o CCB) e, explorando a instabilidade governativa do sector, é um gesto de rejeição dos objectivos essenciais do próprio museu: assegurar o acesso directo à história da arte portuguesa dos séculos XIX e XX através da exposição permanente do melhor do seu património. Permanência, como alguns sabem, não significa estagnação: não impede a rotação de obras, nem a montagem de núcleos temporais ou temáticos, nem o diálogo entre passado e presente.
O constante sacrifício da colecção em favor de mostras temporárias ao longo de toda a temporada passada (já objecto do artigo «Museu suspenso», de 27 de Janeiro) podia ser atribuído à desarticulação entre programas e responsáveis dos diferentes espaços tutelados pelo MC, ou à desorientação do próprio Ministério. É legítimo supor que ao CCB deveria caber a responsabilidade de acolher e co-produzir as grandes iniciativas do Museu do Chiado, a exemplo da relação que, em Paris, o Grand Palais mantém com o Louvre e o Centro Pompidou (veja-se a actual exposição «Paris-Barcelona», da iniciativa do Museu Nacional de Arte Moderna).
Um museu é uma colecção, não apenas um edifício. A tradição designou os que os dirigem como conservadores, porque a sua missão é a de conservar, valorizar e dar a ver (e também ampliar, mas nem sempre, como no caso do Museu Gulbenkian) a colecção de que são garantes. Essa é uma tradição respeitável, que felizmente sobreviveu à condenação que os futuristas e outras vanguardas lançaram sobre os museus, antes de a eles acederem - entretanto, a ideia de «tábua rasa» constituiu-se como uma outra tradição, com o seu dinamismo concorrencial e os seus riscos (a destruição dos templos afegãos é um último exemplo).
Urge saber se o esvaziamento do Museu do Chiado das suas atribuições e a transformação em galeria ou centro de arte são uma decisão sustentada em opções do Ministério ou se cada director faz o que quer durante os quatro anos de mandato. Em qualquer dos casos, a opinião publicada é neste caso um apelo a que a opinião pública se faça ouvir. Uma incitação à revolta em defesa do Museu.
#
Expresso 10/11/2001>
O ARTIGO TEVE A SEGUINTE RESPOSTA DA DIRECTORA DO IPM
Museu do Chiado
Raquel Henriques da Silva *
O artigo «A colecção histórica do Museu do Chiado continua invisível. Incitação à revolta», da autoria de Alexandre Pomar, publicado no Cartaz do Expresso de 3 de Novembro, afirma, no seu parágrafo final, que «urge saber se o esvaziamento do Museu do Chiado das suas atribuições e a transformação em galeria ou centro de arte são uma decisão sustentada em opções do Ministério ou se cada director faz o que quer durante os quatro anos de mandato». É a esta «urgência» de pergunta que venho responder:
1. O Instituto Português de Museus (IPM) aprova anualmente os planos de actividades propostos pelos directores dos museus tutelados. Por isso, nenhum director «faz o que quer», mas a actual direcção do Instituto procura, de acordo com as disponibilidades orçamentais e as finalidades das políticas museológicas que prossegue, respeitar as linhas de trabalho de cada director, discutidas no momento em que se apresenta a concurso ou quando, três anos depois, a sua comissão é renovada.
2. Em relação ao Museu do Chiado, a nossa decisão clara (como a actual exposição dedicada às aquisições recentes comprova) é afirmá-lo como um museu de arte moderna e contemporânea portuguesa, de 1850 até aos nossos incertos e permanentemente alargados dias, cumprindo o desígnio que presidiu à sua fundação, em 1911, e que tão mal desempenhado foi durante o século XX. Tal periodização, única nos museus tutelados pelo IPM, tem como objectivo não só dar continuidade à mais importante colecção nacional neste domínio, mas também apoiar linhas de trabalho noutros museus onde a presença da contemporaneidade tem sido e vai continuar a ser acrescida, através da circulação de exposições temporárias e de depósitos mais ou menos prolongados.
3. A principal linha de trabalho e de afirmação do Museu do Chiado, desde a sua reabertura em 1994, tem sido a realização de exposições temporárias, segundo três orientações programáticas: estudar, valorizar e divulgar artistas portugueses, muitas vezes pela primeira vez, como aconteceu com Mário Eloy, Cristino da Silva, Veloso Salgado, Jorge Vieira, Marcelino Vespeira ou Joaquim Rodrigo; apresentar artistas e movimentos internacionais, capazes de positivamente enriquecer e problematizar a reflexão sobre a arte portuguesa; apoiar artistas jovens, portugueses e estrangeiros, com a finalidade de introduzir, no espaço de um museu histórico, a atitude de questionação que lhes é inerente.
4. Estas orientações de trabalho - traduzidas em exposições de elevada qualidade, catálogos de referência e aquisições enriquecedoras - têm sido, generosa e continuadamente, apoiadas por artistas, por coleccionadores e por mecenas, confirmando a sua adequação e positividade cultural. Quanto ao facto de elas impedirem que haja em permanência uma exposição histórica do essencial das colecções, sempre o entendemos, e continuamos a entender, como clara manifestação do que é o mais grave condicionamento do trabalho do Museu do Chiado: a pequenez das suas instalações, não só para exposição, mas para serviços técnicos e para reservas. Mas havendo, desde o solene e público compromisso de diversas tutelas, assumido em 1999 a decisão de que o Museu crescerá no espaço adjacente, estamos convictos de que vale a pena continuarmos as linhas de trabalho enunciadas que, no médio ou mesmo longo prazo - a cultura não se resolve nem se deve gerir na pequena temporalidade - permitirão que o Museu do Chiado seja um lugar incontornável para o estudo e fruição da arte portuguesa moderna e contemporânea. E para a valorizar, como é nossa primeira obrigação, é mais importante estudá-la, problematizá-la e enriquecê-la do que apresentá-la, solene e morta, encerrada no fatal passado que nos coube em herança. Mas sejamos sérios: não é «uma galeria ou centro de arte» mas, evidentemente, um museu, renovado e ampliado, que, desde 1989, se está a construir, dentro de pesados e nem sempre justos constrangimentos que não permitem a pressa e não se resolvem por estranhas «incitações à revolta».
*Directora do Instituto Português de Museus
Comments