EXPRESSO Actual de 26-02-2000
"Repensar as artes indígenas"
José António Braga Fernandes Dias. Fazer entrar as artes indígenas brasileiras no mapa das artes universais
Entretanto, Fernandes Dias, que é professor na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, será o próximo conferencista no ciclo sobre multiculturalismo e pós-colonialismo promovido pela Culturgest no âmbito do programa «Extremos do Mundo» (segunda-feira, às 18h30). A intervenção intitula-se «Diferença Cultural na Arte do Séc. XX» e abordará a descontinuidade das relações da arte ocidental com a alteridade não-europeia e também com as diferenças culturais que existem no interior das próprias metrópoles euro-americanas.
Reunindo cerca de 900 objectos nos três pisos de um edifício semi-esférico desenhado por Niemayer (a Oca), enquanto a respectiva cave será destinada aos testemunhos arqueológicos pré-cabralinos, a exposição «Artes Indígenas» apresentará no Brasil, pela primeira vez, o essencial dos espólios antropológicos conservados em museus europeus (de Copenhaga, Berlim, Dresden, Viena, Roma e também Lisboa e Coimbra - neste caso, um núcleo do acervo trazido pela «Viagem Philosófica» de Alexandre Rodrigues Ferreira, em 1783-92). Aos objectos históricos que vão do séc. XVI até ao início do séc. XIX, de que o Brasil não possui quaisquer testemunhos, juntam-se peças posteriores oriundas das grandes colecções brasileiras e também objectos de uso ou de produção indígena actual.
As duas anteriores exposições sobre a Amazónia tiveram um enfoque etnográfico predominantemente académico, além de envolverem a consideração dos processos de esmagamento das populações autóctones e da actual reafirmação étnica das nações índias. Em Manaus, a mostra foi mesmo acompanhada por um segundo núcleo programado por organizações indígenas.
O actual projecto para São Paulo é, pelo contrário, uma exposição destinada ao grande público - são milhões os visitantes esperados no conjunto das mostras, até 7 de Setembro - e foi delineada como uma exposição de arte, apresentando os testemunhos da cultura material índia não como objectos etnográficos mas como objectos artísticos.
J. A. Fernandes Dias refere que a concepção da mostra se distancia dos pressupostos correntes na consideração das artes indígenas do Brasil, que continuam a ter por referência padrões estéticos e culturais herdados do séc. XIX e do modernismo. Aliás, as artes tradicionais ameríndias, e mais particularmente no caso do Brasil (com a excepção mais recente da plumária), não participaram do interesse modernista pela «arte primitiva», pelo que se trata ainda de as fazer «entrar no mapa das artes universais».
Além dos objectos rituais que são habitualmente reconhecidos como artísticos devido ao preciosismo da sua execução ou ao investimento decorativo, associando o critério da beleza e a espiritualidade que a tradição ocidental atribui à obra de arte, a exposição reunirá objectos quotidianos de uso pessoal e doméstico, que não costumam integrar as exposições de arte, e ainda objectos ou instrumentos produzidos directamente para o comércio, habitualmente classificados como artesanato, ou obras de artistas indígenas contemporâneos (arte «naïve» e apropriações de linguagens visuais ocidentais). Também estarão presentes objectos efémeros ou «site-specific», comparáveis a «instalações», que são construídos por tribos índias com fins rituais ou de marcação de territórios funerários.
Fernandes Dias pretende «fazer intervir critérios adoptados pela arte contemporânea», nomeadamente pela chamada arte conceptual, para pôr em questão os privilégios do olhar ocidental e «alargar o âmbito do que é reconhecido como artístico nas produções materiais das culturas indígenas».
Em causa está a aplicação de um sistema ocidental de classificação dos objectos a culturas que não utilizam o conceito de arte para identificar a respectiva diferença ou autonomia. Pelo contrário, valoriza-se agora a categoria de «objectos autênticos», os quais «podem ser altamente elaborados ou de grande austeridade, mas são feitos com materiais e segundo modos específicos, desempenham funções tradicionais e são carregados de significados culturais, míticos ou cosmológicos, pelo que devem ser vistos como a materialização de ideias complexas sobre o mundo e a vida humana», segundo refere o comissário da exposição.
Além dos núcleos de Arqueologia e Artes Indígenas, a «Mostra do Redescobrimento», que tem como comissário-geral Edemar Cid Ferreira, inclui outras grandes exposições dedicadas à Arte Afro-Brasileira, produzida ao longo dos séculos por artistas negros e testemunhando a continuidade de relações religiosas e culturais com África - ao qual se acrescentou mais recentemente uma mostra intitulada «Negro de Corpo e Alma», sobre a imagem dos negros na cultura brasileira -, à Arte Popular, incluindo as contaminações entre arte e artesanato e resultantes da miscigenação brasileira, e às «Imagens do Inconsciente», esta oriunda do museu com o mesmo nome criado pela psiquiatra Nise da Silveira.
Outras mostras ainda acolhem separadamente a Arte Barroca, a Arte do Século XIX, a Arte Moderna e a Contemporânea (as duas últimas comissariadas por Nelson Aguilar, que é também «curador-geral» de todo o projecto), para além do núcleo «O Olhar Distante», sobre o Brasil visto por artistas estrangeiros, e «Carta de Pero Vaz de Caminha», onde o documento original do «achamento» do Brasil é acompanhado por 11 obras de artistas portugueses actuais, num projecto que envolve a Comissão dos Descobrimentos Portugueses. Serão publicados 12 catálogos autónomos e a inauguração ocorrerá com a presença dos Presidentes Jorge Sampaio e Fernando Henrique Cardoso.
Em Novembro, a Fundação Gulbenkian acolherá a exposição de Arqueologia e uma remontagem dos núcleos respeitantes à arte do séc. XX, que ocuparão todo o CAM, enquanto a mostra «Negro de Corpo e Alma» será apresentada na Alfândega do Porto, em Janeiro.
Quanto às «Artes Indígenas», cuja cenografia será da responsabilidade de Naum Alves de Souza, figura destacada do «teatro novo» brasileiro dos anos 60, serão apenas mostradas no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, também como uma homenagem ao crítico e historiador Mário Pedrosa. Prevê-se, no entanto, que uma sua síntese venha a integrar a montagem panorâmica de toda a «Mostra do Redescobrimento» que se anuncia para os Museus Guggenheim de Nova Iorque e Bilbau.
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