01-02-2003 (versão extensa?)
"As pedras vivas de Coimbra"
«A Escultura de Coimbra – Do Gótico ao Maneirismo, "Sala da Cidade", Coimbra,
Não se circula pelo centro de Coimbra sem que se imponha a evidência de uma quadra excepcional, por efeito da maciça promoção da sua capitalidade cultural. No edifício da Câmara, dois enormes telões com as imagens de um díptico de Inês Gonçalves promovem o novo Centro de Artes Visuais, que não se integra no programa mas faz parte das alterações de Coimbra. Bandeirolas e grandes cartazes dão vida à cidade ao anunciarem «uma cidade viva» e as múltiplas iniciativas em curso. À entrada da Sala da Cidade, designação atribuida ao antigo refeitório do Mosteiro de Santa Cruz, a grande ampliação de uma imagem de Nossa Senhora com o Menino, com os vestígios dourados da antiga pintura, impõe-se a quem passa.
A exposição «A Escultura de Coimbra – Do Gótico ao Maneirismo» inaugurou a programação e terá sequência em mais duas produções de carácter histórico e local centradas num passado que foi artisticamente muito mais vivo que o presente. Seguir-se-à a recordação dos «Pintores de Coimbra – Do Gótico à Renascença» e a celebração do próprio Mosteiro, entretanto em obras de restauro, enriquecida pela reconstituição do antigo espólio, envolvendo as colecções de ourivesaria e de manuscritos do seu «scriptorium», sob a designação «Memórias de Santa Cruz». Começou-se pela escultura que teve sede nacional nas oficinas da cidade, nos séculos XIII-XIV, por via das qualidades da pedra calcária da região e da cronologia da urbanização do reino.
Dotou-se a mostra de um aparato cenográfico próprio das grandes cerimónias, com sequência do itinerário do visitante por entre os trabalhos de recuperação em curso, através do claustro e da igreja, para se observarem outras peças que permanecem «in situ». O espaço despido do antigo refeitório foi transformado num circuito fragmentado e obscurecido, algo apertado no seu sentido de ida e volta, colocando-se as peças de escultura, quase sempre escultura arquitectónica, em nichos, janelas recortadas e peanhas, sob jogos de luz direccionada. A compartimentação sublinha certas imagens mais reverenciadas e não impede alguma comunicação visual entre as peças seleccionadas, mas há certamente protagonismo em excesso do exercício do «design» expositivo (a que se chama « concepção plástica») assinado por António Viana, o que logo se confirma pela observação das guardas e das páginas finais do catálogo cartonado (30 €) onde se incluiram reproduções dos projectos e estudos para a cenografia.
Comissariada por Pedro Dias, da Universidade de Coimbra, a mostra inclui 74 números de catálogo, com inclusão das peças «in situ», num percurso estabelecido por um discurso historiográfico que privilegia, sobre a permanência viva do poder das imagens, as atribuições de autoria e as informações cronológicas quanto aos mestres, oficinas e estilos artísticos, servindo-se de painéis informativos que balizam a mostra em sucessivos núcleos. Inversamente, o catálogo compõe-se de um único e extenso texto histórico da autoria do comissário, compilando investigação sobre períodos e principais autores (de Mestre Pêro e a sua oficina até João de Ruão, seus seguidores e outros artistas), com muitas ilustrações suplementares, que é seguido pela sequenciação não comentada das obras reproduzidas.
Vindas em especial do Museu Machado de Castro, com proveniência dos Mosteiros e Igrejas de Coimbra, ou de Lorvão, Montemor-o-Velho, Condeixa e Oliveira do Hospital, quando ela não é desconhecida, mas também dos Museus de Arte Antiga ou de Grão Vasco, as esculturas expostas escolheram-se também em colecções particulares, alargando quanto à referência coimbrã as sucessivas selecções recentes que vêm da «XVIIª Exposição» de 83 até «O Sentidos das Imagens» em 2000.
Imagens com significado, mais do que com autor – que pode ser anónimo e de raízes populares, sendo raramente assinadas e só às vezes atribuídas a um mestre identificado ou suposto, às respectivas oficinas ou aos seus seguidores -, as peças de culto cumprem programas iconográficos e seguem modelos tipológicos fixados, dos quais se autonomizam ou não por pormenores formais que diferenciam personalidades criadoras, cumprindo uma invocação do sagrado que se prolonga na permanência actual de uma dimensão humana expressiva e comunicante. Um primeiro núcleo define-se em torno de Mestre Pero, talvez vindo e Aragão ou da Catalunha, que marcou com um estilo mais naturalista uma tradição escultórica já estabelecida na cidade. Gil Eanes e João Afonso, que trabalharam na Batalha, depois Diogo Pires-o-Velho, e o-Moço, Olivier de Gand e Odart, já na primeira fase da Renascença, depois João de Roão, polarizam o itinerário da escultura de vulto, partilhando a excelências das obras com os desconhecidos autores de, por exemplo, um Anjo e e uma N. Senhora de uma Anunciação (final do séc. XV, colecção particular).
Nos seus lugares de instalação originária, percorrem-se depois os baixo-relevos do claustro e o púlpito de Nicolau Chanterene, também autor com Diogo de Castilho do portal da fachada do Mosteiro, e dos túmulos de Afonso Henriques e Sancho I na capela-mor, em co-autoria com o desconhecido «Mestre dos Túmulos Reais», subindo-se ainda ao coro alto, habitualmente inacessível, onde se instalou o cadeiral ricamente esculpido atribuido a Machim.
«A Escultura de Coimbra do Gótico ao Maneirismo»
Sala da Cidade, Coimbra, até 31 Maio
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