Arquivo (e era um trabalho muito diferente em 2003 do que é em 2008, mas o mesmo)
Expresso Actual - 12-07-2003
"Matéria viva"
Uma pintura com força para voltar a perturbar ("R.A.
faz da pintura um exercício resolutamente destituído de amabilidade e
certamente também por isso pinta monstros e vísceras. Se tais figuras
parecem agressivamente estranhas é porque à pintura se foi proibindo
que incomodasse")
Ricardo Angélico, Galeria Ara, Lisboa (até dia 25)
Um mesmo gosto pelo inventário, pela ficção e as imagens de uma enciclopédia fantástica e pelas fronteiras do terror, investigadas com humor mais ou menos cruel, associa as duas séries, como se se tratasse, para o observador que as viu em sequência, do exterior e interior das mesmas criaturas. Mas outros rostos e vultos disformes também já se tinham visto («Mais Retratos de Dorian Gray», por exemplo) desde a individual de 1999 que revelara o trabalho deste jovem pintor «dos anos 90», que nasceu em 1973, em Angola, se formou na Escola do Porto e foi aluno de Batarda.
Se a deformação das figuras (deformação expressiva e/ou expressionista) foi um dos caminhos seguidos por muita arte moderna, contornando ou não as tentações da caricatura, Ricardo Angélico parece querer interrogar esse desvio afinal exigido como norma passando para lá da fronteira da normalidade recuperável. Ao deformar radicalmente as suas figuras torna-as mais do que monstruosas, são verdadeiros monstros, e disseca-as depois com imaginários cuidados de ilustração médica. De certo modo, dir-se-ia que subverte a arbitrariedade formal da pintura moderna e, sobre a experiência histórica desse passado recente, volta com ironia a fazer pintura antiga, adoptando, enquanto ficção pictural, a rigorosa observação (do disforme) como atitude primeira do artista.
Antiga, esta pintura não é feita para ficar bem na fotografia (quase tudo a que hoje se chama pintura faz-se de modo a ser visto em reproduções e devia designar-se como «estudo para fotografia», invertendo os primeiros usos da imagem fotográfica). O que se vê, surgindo dos fundos escuros, os monstros, ou agora nas mesas sujas do exame anatómico, acontece com a (como) matéria pictural, constrói-se com pastas informes, antes e depois de ser uma imagem, e divisa-se lentamente ao mover-se o observador frente ao quadro, sob a luz reflectida pelo óleo.
Contra a facilidade ambiente, mais mediática, R.A. faz da pintura um exercício resolutamente destituído de amabilidade e certamente também por isso pinta monstros e vísceras. Se tais figuras parecem agressivamente estranhas é porque à pintura se foi proibindo que incomodasse, como acontecia com martírios e infernos, com as carnes profanas de Rembrandt e Soutine, com as matérias apenas (tintas escorridas ou lamas informes) de Pollock e Dubuffet. E também com Bacon e Freud, referências incontornáveis na passagem do século. Juntem-se a ficção de Borges, que o título refere, fontes eruditas (Leonardo, etc.) e clássicos da ilustração médica (Vesalius), e temos um muito amplo universo de referências a adensar esta pintura culta que vem perturbar o que chamamos arte contemporânea.
De passagem:
http://alexandrepomar.typepad.com/alexandre_pomar/2008/04/porto-1004.html#more
Balanco de 2003 (dez melhores) - ver balanços
Mais bibliografia
1999, José Luís Porfírio, Expresso 11 Dez. O(s) logro(s) da pintura , José Loureiro, Módulo + R.A., Ara #
À convulsão geral há que somar uma infinda soma de pormenores, pequenos quadros no quadro, palavras, minúsculas colagens do tamanho de selos, por vezes selos mesmo, minúsculas palavras impressas constituindo um discurso paralelo; em Circo 99 temos «Nakedismo», «Nudism», «Mapism», «Curvism», «Beuysism», «arte novíssima», «arte muito mais nova», «allien art», «artrite», «art cadeau», «tiket-art», «curatorism», e por vezes estas palavra são/estão ilustrados.
Assim o nosso olhar vai do movimento geral, da soma dos corpos, das cena abertas, ou das quadrículas mais ou menos completas, para uma decifração que lembra as armadilhas verbais que povoam as pinturas de Batarda (professor de Ricardo Angélico na Escola do Porto), convidando-nos a cada passo para uma leitura múltipla da cada peça, entre o formigueiro de pequenos eventos e a convulsão geral, ou acumulação, que os organiza.
Festiva e amarga ao mesmo tempo, esta é uma pintura que se reconhece como imagem, matéria e sentido, numa movência virtualmente infinita e que não esconde, antes manifesta, um mundo de filiações; Bosch (que Rocha de Sousa também indica) e Bacon igualmente, num exercício onde o deliberado significar é uma força, numa acumulação de sentido quadro a quadro.(...)"
# de 2006
«Circo 99», 1999, óleo sobre linho, 158 x 160 cm
Na colecção Fundação PLMJ:http://www.fundacao-plmj.com
Cada Cancíon Anuncia um Crimen,2006, Acrílico s/ linho, 180 x 250 cm
Dowload Marrakesh, 2006
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