Falou-se na "consolidação de Lisboa como espaço euro-africano" - João Gomes Cravinho, segundo o Público (29 Nov.) - e de "perpetuar esta realidade de Lisboa ser a ponte entre a Europa e África" - António Costa, tb no Público. Se as palavras foram bem transcritas e se elas não se referem apenas à cimeira UE-África de há um ano e visam de facto justificar o África.Cont, não são mais do que um logro - um engano ou uma mistificação. Custa ver políticos sérios envolvidos em tais passes.
Lisboa não é e nunca foi um espaço euro-africano (talvez o fosse quando ainda havia escravos). É agora um território plural e móvel, onde brasileiros e gente do Leste, chineses e outros imigrantes mais ou menos recentes acompanham e concorrem com a presença africana também recente - o excelente documentário do Sérgio Tréfaut Lisboetas tinha mostrado essa nova dimensão da cidade-metrópole. Para além do formulário político, a realidade dos ghettos é muito mais poderosa do que o contacto mediado por qualquer hífen abstracto.
A ponte referida é outro equívoco ideal, não uma realidade. As pontes para África estão (desde os anos 60 e 70) em Londres, em Amsterdão, em Paris, Marselha, etc. Até às independências quase não se viam negros em Portugal, eram infinitamente menos que em quase todos os países europeus, como se descobria com espanto ao passar a fronteira dos Pirinéus. As diferentes feridas das descolonizações e das guerras civis fizeram com que fosse depois difícil reconhecê-los quando começaram a chegar. Foi quase sempre através de outras pontes europeias - já em tempos do multiculturalismo tornado moda, e mais a partir dos anos 90 - que nos chegou como fenómenos colectivos a música ou alguma outra informação, e maioritariamente vinda já das diásporas africanas e não dos países de origem (os Ouro Negro e alguma literatura poderão ser apontados como excepções). Portugal manteve por muito tempo, mantém ainda em grande parte incólume, uma incapacidade profunda de passar a um tempo cronológico pós-colonial.
As manifestações "back to Africa" que passaram da 2ª geração de Jamaicanos e africanos em Inglaterra para os jovens brancos locais e que foram influenciando as sub-culturas urbanas são coisas já dos finais dos anos 60 - foram cá chegando tarde e muito recicladas pelo mercado pop. Valia a pena ler Dick Hebdige (Subculture. The Meaning of Style, de 1979; trad. francesa em 2008, ed. Zones - La Découverte). É há pouco tempo que fenómenos idênticos vividos aqui e em primeira mão são reconhecidos.
Tanto a permanência do tema do Museu dos Descobrimentos (temido pela hierarquia museológica, que sempre o entendeu só como museu de arte, mas está agora a desdobrar-se em diferentes projectos periféricos) como a escandalosa paralisia do Museu de Etnologia, sobre o qual convergem todos os equívocos, mostram a incapacidade de gerir o passado colonial e o presente pós-independências.
O Museu de Etnologia (que reúne colecções nacionais e de outros continentes) está fechado não por falta de pessoal ou de meios, mas porque é assim que o querem (com as colecções visitáveis apenas nas reservas, o que será entendido como a vanguarda da museologia). As suas colecções têm sido prolongadas com recolhas de objectos actuais, "pós-tradicionais" e urbanos, mas a recusa da musealização do "outro" é considerada mais de ponta ou muito politicamente correcta, e no universo da cultura cada chefe faz o que quer em roda livre já há muitos anos. Entre as corporações culturais fechadas sobre si mesmas e as tutelas políticas deixou de haver trânsito - ou só circulam alguns enganos.
Extractos de blogues citados pelo Público a 1 Dez. (incluindo uma boa parte de "Africa.Cont" aqui ) referiam-se precisamente ao Museu dos Descobrimentos e a Etnologia, que me parecem melhores temas que os Museus da Língua, o Hermitage e outros dislates recentes: ver Paulo Tunhas em http://atlantico.blogs.sapo.pt. Helena Matos publicou "O papel de embrulho" no Público de 2 Dez. ( http://o-povo.blogspot.com ) e Augusto M. Seabra escreveu sobre "Os novos africanistas" (I e II) a 1 de Dezembro: http://letradeforma.blogs.sapo.pt/46618.html
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