Quando me pediram para escolher a melhor exposição do ano, elegi José Manuel Rodrigues e a "Antologia Experimental" que apresentou em Évora no Palácio da Inquisição (de 6 de Junho a 31 de Outubro), a convite da Fundação Eugénio de Almeida e com comissariado de Rui Oliveira. A escultura e o objecto, a instalação, o vídeo acompanhavam e envolviam numa dimensão criativa mais ampla a revisão da obra fotográfica do autor. Foi uma revisão que, depois da retrospectiva de 1998 na Culturgest ("Ofertório"), conseguiu abrir novas direcções de abordagem e reuniu peças perdidas, para além das muitas remontagens e recriações de antigos originais e de obras recentes e inéditas. Tudo feito com um enorme investimento do autor e do comissário no rigor e na inventividade das condições de montagem, na produção das excelentes provas de exposição e ainda na edição de um catálogo com uma concepção original, certíssima com os critérios da exposição. (ver fotos: abrir aqui a "categoria" José M. Rodrigues)
PELAS FOTOGRAFIAS
Se escolhesse a melhor exposição de fotografia teria de referir a de David Goldblatt em Serralves - "Intersecções Intersectadas", de 26 Julho a 12 Outubro, que espero tenha vindo resolver a relação demasiado complexada do museu com a fotografia "artística" (como se pôde avaliar na edição de "Fotografia na Arte, de ferramenta a paradigma", coedição com o Público em 2006). Continuando a progredir na mesma direcção, ver-se-á em breve o trabalho de outro sul-africano, Guy Tillim.
Goldblatt tinha sido bem mostrado em 2002 no CCB (direcção de Margarida Veiga), mas esta nova oportunidade focou-se na passagem ao digital, à cor e ao grande formato, e também à produção de trípticos, associando a observação do que foi o trânsito histórico da África do Sul à evolução dos processos técnicos e materiais, experimentada por um fotógrafo veterano. A mostra foi da responsabilidade de Ulrich Look, que em pintura se tem interessado pela sobrevivência de restos em geral exangues (agora Christopher Wool) mas que terá descoberto a vitalidade e a eficácia da fotograia (mais um esforço e conseguirá valorizar a função, contra o gosto pós-vanguardista do formalismo oco e contra o culto tardo-modernista da autonomia ou gratuitidade esteticista, que sustentam o sistema das "belas-artes" sobre a sobrevivência já só oportunista da velha teoria especulativa da arte).
Prosseguindo no campo próprio da fotografia (separando-se o que não deve ser amalgamado - não se misturam nos resumos do ano o jazz e o "clássico", o pop, etc, ou o teatro com a dança por serem da área do espectáculo), há que registar como acontecimentos marcantes os dois leilões dedicados individualmente pela P4 Photography a Victor Palla (29 de Maio) e a João Cutileiro (25 de Outubro), com implicações na criação de um mercado coleccionista especializado ou específico e na fixação de valores de referência, para lá de terem sido decisivas contribuições para iluminar algumas zonas obscuras da história do medium. Nos dois casos revelaram-se obras inéditas e em geral ignoradas - nada ficou como dantes quanto às décadas de 50 e 60. Em relação a Victor Palla, são importantes as obras experimentais associadas à fotografia subjectiva defendida no início dos anos 50 por Otto Steinert e de que Fernando Lemos foi um atento observador em Portugal (a que é costume chamar surrealismo), e igualmente as experiências mais tardias de impressões gráficas com cor saturada, em alto contraste. Se Victor Palla não é só o fotógrafo-editor de "Lisboa, Cidade Triste e Alegre" (1959), voltou a saber-se que João Cutileiro tem uma presença original e única na fotografia posterior à vaga de interesses com que a partir de 1954 se fez eco de "Family of Man", com os seus retratos e nus que nos inícios dos anos 60 se podem associar de modo muito pessoal às sensibilidades Pop.
É indispensável referir igualmente a abertura da galeria Pente 10, em Lisboa, dedicada à fotografia, com direcção de Catarina Ferrer e Pedro Lopes Vieira, inaugurada com uma exposição de José M. Rodrigues, "Elementos", a 29 de Abril, a que se seguiram a estreia de Miguel Santos, com "Love Forbids Us to Love", e ainda Flor Garduño, Carlos Afonso Dias e Rita Barros, sempre com a edição de excelentes catálogos. A diversidade das direcções é aqui a marca de um grande acerto nas escolhas feitas neste primeiro ano de actividade.
A Colecção BES (ou BESart) mostrada no CCB-Museu Berardo tem de ser referida aqui tanto pela evidente grande dimensão dos investimentos (e é óbvio que se joga na quantidade) como pela diligente apresentação pública das compras feitas desde 2004 (mas algum recuo daria mais coerência ao que se mostra como um "Salão"), tendo versão impressa em catálogo com o subtítulo "O Presente: Uma Dimensão Infinita" (como o passado e o futuro tb são dimensões infinitas, isto não quer dizer nada, e assim está bem, tudo a condizer). Exemplo de colecção empresarial ou corporativa, demonstração plena de que arte de vanguarda e arte oficial são hoje uma e a mesma coisa - uma coisa institucional, anónima, anódina e incaracterística (apesar da simpatia pessoal e da boa vontade de Alexandra Pinho, mulher do ministro Manuel Pinho, profissionalmente ligado ao BES - o que é só uma pista informativa e não a crítica de qualquer irregularidade) -, esta é também um exemplo perfeito do que uma boa colecção não deve ser: reunir um pouco de tudo e de todos será uma dispersão táctica de investimentos, uma operação de relações públicas para todos os públicos, um bodo aos ricos, aos remediados e aos pobres, aos consagrados, aos que vêm nas revistas e aos que são ditos emergentes. Esta actualização do salonismo académico de meados do séc. XIX (e outros modelos de exposição colectiva seriam certamente possíveis) talvez seja uma estimável almofada para galerias (algumas galerias?) e (alguns) jovens artistas, com o mérito de se passar a conhecer um extenso acervo a que - talvez - será possível recorrer para organizar exposições temáticas ou sectoriais. Não importa quem está e quem falta; resta-nos registar a preferência pelo quadro fotográfico, pela fotografia de exposição, ou objecto de origem fotográfica e/ou recriação informática, que se impõe como sucedâneo de outros processos de representação e/ou intencionalidade estética, de preferência gratuita, e agradecer esta desinteressada (?) redistribuição de bens praticada pelo banco, até porque assim sempre é possível ir vendo que na arte que interessa à banca (com as extensões mais obscuras da Elipse do BPP, dos Mirós e etc do BPN, etc) não se esgota, apesar da sua ostensiva voragem, nem se dilui numa indiferença total, apesar do pretendido efeito de massificação (democrática?) de todas as coisas, o que é a arte do presente. Não é que existam espaços ou vias alternativas (porque tudo é absorvido), mas há sempre a possibilidade de fazer escolhas e apostas, de ensaiar leituras, de construir gostos.
A não perder (a experiência não é agradável mas é uma ocasião marcante) o "espaço" muito verde do BES no Marquês de Pombal ("Arte e Finança") onde a colecção continua - e com alguns dos seus melhores autores: por exemplo, Nicholas Nixon (e algumas Irmãs Brown), José M. Rodrigues, António Júlio Duarte. Entretanto, acrescente-se que não se percebe que credibilidade veio trazer à exposição do CCB o comissariado de uma senhora espanhola sem créditos nesta área e que, aliás, se mostrou particularmente diligente a reproduzir mimeticamente as opções e exclusões que têm sido por cá institucionalmente dominantes (quem soprou aquelas escolhas?). Em resumo: mostrando assim, não se vê nada. E ainda dois pequenos exemplos para a eventualidade de melhores práticas: 1) porquê, para quê, uma prova, uma só prova, de Anna Gaskell, uma interessante quase desconhecida? 2) porquê só dois forcados retratados por Rineke Dijkstra (ainda por cima tão compostinhos), em vez da série toda ou de uma parte relevante da série, já que se trata de um tema português, um possível pólo diferenciador da colecção, entre outros eventualmente adoptáveis. Com os meios do BES compra-se à dúzia.
Entretanto, o Centro Português de Fotografia foi emagrecido (via PRACE passou para a Direcção Geral de Arquivos, DGARQ), mas ainda não se devolveu a Cadeia ao Porto. O que nasce torto dificilmente se endireita - e a história institucional da fotografia em Portugal (o Arquivo Nacional de Fotografia de inícios dos anos 80, na Ajuda; a Colecção Nacional de 1989-90, etc; o monstro estatal de 1997) tem sido uma estória de faca e alguidar, de crime e castigo. Numerosos protagonistas foram sempre oferecendo razões para o Estado se escusar, e ele tem aproveitado. Por reflexo (por incúria ou por acaso, ou vítima indefesa do LisboaPhoto?) o Arquivo de Lisboa continuou esquecido pelos meandos da CML - e só no final de ano conseguiu montar o que é o primeiro acto de retribuição face ao interesse que a Fundação Foto Colectania, de Barcelona, tem dedicado a Portugal: a exp. "Transiciones" de Manel Armengol.
Para passar ainda a coisas mais interessantes, sem a ambição de ser exaustivo, fica menção da individual de Rodrigo Amado, “Searching for Adam”, na Módulo; da mostra de Julieta do Vale, "Futuro Próximo", na Monumental; e (só conhecida pelo catálogo) da exp. de António Júlio Duarte, no Centro Cultural de Lagos, "Jesus Never Fails". Deixo para o fim mais um grande acontecimento nacional de 2008, a proeza editorial de Edgar Martins, "Topologies", publicado pela Aperture.
Outro dado positivo é a proximidade geográfica da Espanha: por exemplo, Paul Strand em Vigo (até 11 de Jan.) e antes na Corunha; Edward Steichen no Reina Sofia, Madrid - para ir sabendo algumas coisas básicas que não se aprendem nos livros. E em 2009 é de Barcelona e do MACBA que virá para o CCB-Museu Berardo, em Março, a exp. "Archivo universal. La condición del documento y la utopía fotográfica moderna". (documentos-e-utopias)
ARQUITECTURA E VARIEDADES
Trocando a fotografia e os suportes fotográficos por outras áreas, há que assinalar duas importantes exposições de arquitectura: Le Corbusier no CCB-Museu Berardo (vindo do Vitra-Museum, e apresentando as muitas dimensões do arquitecto pintor, escultor, designer de mobiliário, etc) - uma exposição histórica como raramente se tem visto por cá; e Peter Zumthor (1943, Basileia), "Edifícios e Projectos 1986-2007", apresentado pela Experimenta Design na Lx Factory.
E ainda, 3ª exposição, entre a arquitectura e a fotografia de Luisa Ferreira, "Gente da Casa", um "projecto" multidisciplinar do arq. Carlos Gomes, também na Lx Factory.
Duas outras exposições muito bem sucedidas tiveram por alvo o cinema e a literatura, ultrapassando em muito as intenções consagratórias. Refiro-me primeiro à mostra dedicada a Manoel de Oliveira por Serralves e em particular por João Fernandes e J. Benard da Costa. Para além de uma fabulosa exposição vista em Copenhaga que reunia Hammershoi e Dreyer (2006), não me lembro de ver a passagem do cinema a objecto de exposição resolvida com tal eficácia e inteligência. A segunda teve José Saramago por tema, com origem espanhola: chamou-se "A Consistência dos Sonhos" e viu-se na intermitente Galeria de Pintura do Rei Dom Luis, no Palácio da Ajuda. (Na Gulbenkian, instituição desaparecida, gorou-se um outro projecto literário-cenográfico.)
OS RESTOS
O resto é mais breve. Rembrandt no MNAA, com Titus sentado à secretária, mais meia dúzia de gravuras e desenhos, é o expoente óbvio deste "resto": pelo menos a melhor pintura do ano (faz falta alguma informação sobre o historial, o estado de conservação, a fortuna crítica da obra - enfim, coisas que é costume dar a conhecer em países normais).
Outros dois estrangeiros ilustres foram bem mostrados pela Galeria António Prates: em Janeiro, Jan Voss - pintura, relevos e desenhos do artista alemão (n. 1936) que acompanhou Lurdes Castro e René Bertholo no "grupo" KWY, em Paris no início dos anos 60; em Novembro, Karel Appel (1921-2006), holandês como Rembrandt, membro dos Cobra, com obras desde os anos 70.
No Centro de Arte Colecção Manuel de Brito, em Algés, mostrou-se António Dacosta, em Fevereiro, e agora Paula Rego. Em Cascais, o Centro Cultural deu a conhecer pinturas recentes de Ivo, "Silêncio Errante", em Março, em colaboração com os Artistas Unidos: um discreto pintor que foi homeostético, mas mais pintor que humorista. E aí também se mostraram as especulações espaciais de Rui Macedo, que continuaram no Palácio Galveias, enquanto o Pavilhão Branco do Museu da Cidade expôs "O Estado do Sono" de Susanne Themlitz. Sem esquecer a estreia de João Francisco, com naturezas mortas e a revisão erudita e divertida do género, e também o regresso rápido de Gabriel Abrantes, ambos na 111.
O Museu do Chiado voltou a colaborar com a Caja Duero e mostrou Ops e Cinéticos promovidos como "Revolução Cinética" - e o melhor era o documentário reencontrado de Brian de Palma sobre a exp. "The Responsive Eye", MoMA 1965. Outra exp. histórica com mais importância é a que pela primeira vez junta Vieira da Silva e Torres Garcia, "A Intuição e a Estrutura 1929-1949" - no CCM-Museu Berardo até 25 de Janeiro.
De José Loureiro publicou-se um livro-catálogo de qualidade, por ocasião de uma exp. no Centro Cultural Vila Flor, de Guimarães,
E, sem grandes esforços de memória ou consultas, o ano acabou bem com a revelação da sábia e divertida pintura antiga de Gonçalo Pena ("Salão de Outono"), praticada com uma escala alemã e mostrada na Gal. Graça Brandão; com Ricardo Angélico e “The Aronburg Mistery”, em novas direcções formais e ficcionais de trabalho, na Galeria Carlos Carvalho; com Nuno Viegas, "A Núvem Nódoa", na Arte Periférica. (Em tempo: Não vi ainda a mostra de Juan Muñoz em Serralves.)
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