Textos de Arquivo, EXPRESSO Cartaz, de 04.09.99
"A observação activa"
JOÃO QUEIROZ, Centro de Artes, Caldas da Rainha (até dia 26)
UM LADO da galeria-hangar é em grande parte ocupado por uma compacta montagem de desenhos (180), regularmente alinhados em seis longas fiadas horizontais e 30 verticais. Sem intervalos entre si, as folhas de papel suspendem-se dos seus cantos superiores, parcialmente soltas e flutuantes, destacando-se cada desenho, do que começa por ver-se como um painel contínuo, por essa ondulação variável que o afasta da parede e, num segundo momento, pela mancha que o ocupa, mais ou menos centrada sobre os seus bordos brancos e com uma configuração também sempre diversa.
O efeito global de instalação favorece primeiro a visão distanciada e desdobra-se depois nos seus elementos parcelares e bem individualizados, que reconhecemos serem desenhos de paisagem natural, realizados a carvão, num convite a um movimento de aproximação que nunca se detém em qualquer ponto fixo, implicando o observador no percurso também flutuante de uma contemplação activa, com que acompanhará, com o olhar e com o corpo, o alinhamento dado à exposição.
O desenho do natural, diante do motivo, como uma actividade experimental
Nesse trânsito, o observador explorará os motivos que pode identificar em fragmentos de paisagens – árvores isoladas ou em grupo, tufos de vegetação rasteira, caminhos e ondulações de terreno – e procurará adivinhar um ritmo ou uma lógica na disposição dos desenhos, surpreendendo a sua infinita diversidade e, ao mesmo tempo, ensaiando possíveis comparações que dêem um sentido sequencial à montagem, sumariem temas ou localizem um espaço ou itinerário. A atenção do espectador oscilará entre o reconhecimento de objectos representados (árvore, caminho, etc) e a apreensão imprecisa de manchas, arabescos e vazios, torvelinhos ou massas indistintas, com que a forma se furta a qualquer segura tradução verbal e a um eventual destino talvez informativo, sem contudo se sintetizar ou desvanecer numa «abstracção».
No mesmo balanço, notará a constante variabilidade da expressão gráfica, desenho a desenho, na diferença de espessura, firmeza ou velocidade do traço, na espontaneidade da linha contínua e cursiva ou na ligeireza mais aérea de uma malha de pontos, no riscar repetido de uma sombra ou fenda enegrecida, ou antes no esfumar de um contorno, procurando a fidelidade ao pormenor ou suspendendo-se o gesto num apontamento mais vago. Verá que variam a pressão da mão e a resistência do material, mudando também os carvões usados, negros ou a percorrer uma gama interminável de cinzentos e também castanhos.
À errância inconclusiva do observador corresponde a condição do desenho de observação como um recomeço sem fim, sem outra regra que não seja a experiência de uma acuidade visual que prolonga a percepção pelo gesto da mão, como um traçado sísmico das reacções infinitamente variáveis de um vivido acto de ver, cujo resultado sempre provisório e fragmentário restitui a aparência de um modelo com a intensidade sensível de uma urgência que está sempre ausente da cópia. Exercício do olhar e, como sublinha João Queiroz, exercício de execução, o desenho do natural (diante do motivo, «sur le vif») é a transformação em expressão gráfica de sensações visuais, desaprendendo a informação disponível sobre a forma das coisas para surpreender o aparecer da forma, construindo o visível antes da sua descodificação ou categorização conceptual, antes do signo.
A opção da montagem torna evidente que a multiplicação dos desenhos decorre de um programa metódico de trabalho, assumindo como exercício reflexivo sobre a natureza da representação e da imagem o que é forçosamente uma investigação empírica, movida pela variabilidade infinita dos estímulos visuais e também da reacção do artista a esses estímulos. A instalação mostra também que essa investigação não tem por conclusão a chegada a um método ou estilo de representação, a aquisição de uma fórmula que uniformize as diferenças, mas a permanência de uma disponibilidade inteiramente livre para sondar a presença óptica dos objectos e captar, nas relações entre eles, o que os configura como imagem.
Uma disponibilidade para a observação activa, atenta à impermanência e metamorfose das coisas vistas, no trânsito instável entre real e imaginário, e também informada pela memória múltipla da prática de um meio de expressão que nunca se poderia formalizar numa técnica, mas tem uma longa tradição europeia e oriental. Aliás, sem qualquer dogmatismo sobre a «pureza» de um olhar desprevenido, J. Queiroz serve-se por vezes da fotografia e de desenhos anteriores.
Ao longo da última temporada, sucessivas exposições testemunharam a valorização recente da paisagem como um assunto que interessa à criação contemporânea, proporcionando algumas interrogações sobre a permanência de um género tradicional; com esta mostra passa-se à identificação de uma problemática mais ampla, questionando, através da atenção ao espectáculo do visível, a separação entre o desenho e a observação que se estabeleceu como uma persistente convenção modernista.
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João Queiroz, Módulo
20-11-99
As paisagens de J.Q. foram sendo notadas ao longo do ano, em diversas mostras individuais e colectivas. Para o autor, que agora apresenta apenas pinturas, essa classificação como paisagens deve ser problematizada, pelo que tem acompanhado as suas obras com alguns textos de reflexão - J.Q. formou-se em filosofia e é professor de pintura e desenho. Ele recusa uma ideia tradicional de representação que se identifica com «um olhar dominador, coisificador, totalizante», o qual pretenderia hierarquizar, nomear e reduzir a «radical alteridade e infinidade que a natureza constitui para nós». Esse terá sido por muito tempo o olhar de uma pintura que interrogava a natureza sem se dissociar da observação científica e que também se foi sempre interrogando a si mesmo, sem se fixar numa qualquer «tradição». A pretensão da exacta transcrição da realidade com que se academizou o naturalismo tardio, já divorciado da ciência e congelando-se em visões sentimentais, foi paralela às explorações do imaginário simbólico e abstracto, com que se condenava não a representação mas sim a própria observação. J.Q. não pretende trabalhar sobre a história da arte, embora a conheça, mas sobre a experiência visual directa da paisagem, diante do motivo, no caso do desenho, ou através da memória, na pintura. É o trânsito entre o ver e o fazer, entre o olho e a mão, que lhe interessa como objecto da sua pintura, situando-se para além da representação ou do sentido das imagens. (Até 25)
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ver "Paisagens plurais" 10 Abril 99
BALTAZAR TORRES, JOÃO QUEIROZ, MICHAEL BIBERSTEIN, ROSA CARVALHO
Quadrado Azul (até 6 de Maio), Módulo (até 28), Pedro Oliveira (até 17) e Canvas (até 14).
Porto
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Sou o que Vejo (colectiva)
Sociedade Nacional de Belas Artes
05-06-99
João Queiroz, Maria João Salema e Sérgio Taborda, todos eles também docentes no Ar.Co, comprovam as virtualidades da situação - J. Queiroz com os desenhos que sustentam a sua aparição em recentes exposições, centrada na paisagem, redescobrindo a observação e a representação da natureza, em diálogo com citações e comentários escritos, eventualmente defensivos perante os desafios do olhar; M.J. Salema com desenhos a pastel, isolando o motivo como ilha ou bolha na página do papel, diluindo as formas na cor atmosférica; Taborda, com exercícios onde a construção formal é interrogação sobre a luz e o automatismo da mão.
Outros participantes internacionais mostram aguarelas, «frottages» e fotografias. Maria Lino, que expôs em Lisboa em 1968 e se instalou na Alemanha entre 1970 e 97, expõe esculturas e desenhos. Aquelas, usam o tronco de madeira para rudemente configurarem uma presença humana, por vezes sublinhada a cor, estranhamente monumental, abstracta e próxima, ou usam a articulação de tábuas recortadas, em planos cheios e vazios que esboçam situações narrativas, enquanto outras peças ainda praticam o humor da «assemblage». Os seus desenhos a pincel têm também o corpo como tema, vertido em campos de energia e tensão, em que se sintetiza a forma e o gesto gráfico. (Até 19)
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JOÃO QUEIROZ, Liv. Assírio & Alvim - 1-3-97
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JOÃO QUEIROZ, Boqueirão da Praia da Galé - 20-04-96
No velho armazém-galeria de culto, onde os objectos sempre se substituem por ideias ou acções, assegurando pela via de uma radical recusa da recuperação mercantil e da memória museológica uma última verdade da arte como inquetação ou atitude vital, por vezes com assinalável intensidade problematizadora, é agora um desenho que se expõe, mas realizado sobre o chão, irreprodutível e inconservável. «Refluxos feitos pelo pescoço de um pato meio afogado» nomeia literalmente um desenho de limite circular que tira partido das irregularidades do pavimento, como se o gesto repetisse inexplicados rituais da gravação de cavernas, compulsivas necessidades de expressão para sempre não-significantes.
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JOÃO QUEIROZ, Palmira Suso - 2 Fev.91 (...)
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