Expresso Cartaz 8 Dezembro 2000, pág. 19
Porta 33, Funchal
"Viver a paisagem"
Mais do que um exercício de observação e posse, uma experiência vital da natureza
JOÃO Queiroz desenha e pinta paisagens, mas tem uma grande resistência a usar pacificamente essa designação, isto é, a admitir a tradução daquilo que faz por uma palavra gasta e, em especial, a aceitar os hábitos ou códigos da representação-dominação da natureza que com ela se expressam. A sua mais recente exposição acontece no Funchal e todos os trabalhos expostos têm por origem, mais ou menos evidente, uma experiência de relação directa (visual/vital) com o ambiente natural do arquipélago. Qual é, porém, a diferença, a distância ou o trânsito que se estabelece entre a paisagem física que se visita ou em que se vive e o objecto (de arte) que se classifica como paisagem? Os trabalhos de João Queiroz somam à sua áspera sedução visual a capacidade de pôr questões, o que se deverá entender como um grau superior de eficácia.
Outros trabalhos (as pinturas, os desenhos de maior formato), que já foram realizados em Lisboa, resultam da reelaboração de informações memorizadas - de sensações recordadas e revividas -, ou reavivadas através da observação de esquiços, desenhos prévios ou mesmo fotografias. No entanto, se existe então uma recomposição dos elementos da paisagem, ela mantém ou recupera, através da concentração intencional sobre a emergência liminar das formas (antes da identificação dos objectos ou da sua categorização conceptual), a vibração sensorial diante do ambiente natural, sem se subordinar a um qualquer projecto de síntese descritiva ou de codificação formal.
E uma mesma impressão de imediaticidade que se comunica nessas obras de maior investimento processual (mas não de maior «acabamento» convencional), talvez porque a primeira transcrição dos dados da observação, nos esquiços desenhados, é um registo do visível que exige a si próprio tanto a recusa à categorização interpretativa do visto como a atenção à gestualidade envolvida por essa experiência ou vivência da natureza.
Resultantes de um programa muito reflectido, com base no interrogar da representação e da constituição da paisagem como género artística histórico e prática tradicional, erudita ou não (o autor tem uma dupla formação em filosofia e em pintura e desenho), as paisagens de João Queiroz não são aprisionadas por uma disciplina rigidamente programática. Pelo contrário, elas caracterizam-se pela dimensão experimental que é exigida pelo seu próprio projecto reflexivo, surgindo como uma experiência viva da natureza, que se mantém, variando as condições processuais, do esquiço realizado ao vivo diante do motivo ("sur le vif», «from live», como se diz do desenho de observação) até à reelaboração no atelier, investindo o artista nessa passagem do exercício da observação para o exercício da execução.
Não é, de facto, apenas de um exercício de observação que se trata, o qual privilegiaria o olhar na busca da transformação em expressão gráfica ou pictural de uma sensação visual, à qual a mão serviria como instrumento fiel e disciplinado. A postura conceptual de João Queiroz, que ele próprio tem formulado em textos próprios e em entrevistas, acentua a dimensão corpórea do gesto que desenha ou pinta: «Eu desenho e pinto com o corpo»; «estou no meio da natureza com o lápis, oiço e vejo o vento nas árvores e penso ao mesmo tempo em que movimentos vou fazer no papel para transpor para aí os movimentos da natureza. Mais tarde, no atelier, trabalho a partir desses movimentos corpóreos» (entrevista de Doris von Drathen, «Kunstfórum», Julho-Setembro 2000).
Assim, é desde logo a observação que é «corporizada», na medida em que Queiroz procura que ela seja intelectual e emocionalmente desprevenida e também que se liberte de qualquer intenção intelectual de descrição-apropriação da natureza. Se essas foram atitudes produtivas enquanto a representação da natureza não se dissociou na criação artística e na investigação científica (do que pode ser exemplo o desenho de Dürer), a relação actual com a paisagem, depois da fotografia, parece abrir-se a outras possibilidades ou ambições.
No Funchal, os trabalhos de João Queiroz ocupam a vasta sala do piso térreo da galeria e distribuem-se por outras salas de mais dois andares, sempre com uma montagem cuidadosamente desordenada, que faz sucederem-se diferentes técnicas (desenhos a grafite, aguarelas e óleos), diversíssimos formatos e também os variados lugares ou motivos observados pelo artista. A uma observação atenta, o visitante poderá vir a reconhecer que um mesmo motivo é retomado em diferentes «media» e que ele surge ora em esquiço ora reelaborado, sem diferenciação substantiva de resultados.
Em dois espaços, a mostra toma outra configuração: a de uma parede contínua de desenhos a carvão ou sangue de drago (um vermelho intenso obtido a partir da semente do dragoeiro), idêntica à que João Queiroz apresentou em 1999 nas Caldas da Rainha, e uma sequência que acompanha o itinerário de uma levada, em aguarelas que foram realizadas a partir de fotografias.
Não é irrelevante a quantidade dos trabalhos expostos, e, se se poderia falar-se de uma exposição-soma, na diversidade dos mais de 180 trabalhos (pinturas a óleo, aguarelas e desenhos a carvão, sangue de drago, grafite e pena), o que importa é o enunciado da sua própria infinitude. A produção multiplicada, infinitamente variável quanto aos lugares vistos e aos processos materiais de realização das «vistas», não é independente do próprio projecto vivencial e reflexivo que os desenhos e pinturas corporizam, porque o exercício de execução, a prática concreta de uma observação gestualizada, é mais importante do que o exercício do olhar que estaria implícito no desenho e na pintura de paisagem.
O facto de se tratar da paisagem da Madeira e de aí se localizar a exposição confere urna intensidade particular à relação do espectador com o trabalho de João Queiroz, não só por o ambiente natural (ainda que degradado em muitas zonas pela desenfreada especulação turística) ter uma presença mais radical e emblemática no arquipélago do que noutros lugares, mas também porque a representação convencional da paisagem continua aí a alimentar uma produção tradicionalista e de largo consumo. O confronto com esta será certamente produtivo e permitirá entender como as paisagens que se expõem na Porta 33 assumem a persistência de um género (como uma necessidade ou um gosto que nenhum «progresso» conseguiu inviabilizar), ao mesmo tempo que o renovam mediante a sua problematização e a procura de diferentes comportamentos face à natureza, à arte e à vida.
Entretanto, deve referir-se a intensa visibilidade que a produção paisagística de João Queiroz tem tido nos últimos dois anos. Para além das mostras individuais, destacaram-se as participações nas colectivas «Paisagens no Singular» e «O Génio do Olhar, Desenho como Disciplina», duas produções itinerantes do IAC dirigidas respectivamente por Miguel Wandschneider e Nuno Faria e por Manuel Castro Caldas. Actualmente, é um dos artistas nomeados para o Prémio EDP de Desenho, que se apresenta no Palácio da Ajuda. (Até 3 de Fevereiro de 2001)
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