TEXTOS EM ARQUIVO, 2006, 2003, 2001, a propósito opu por ocasião da exp. de João Queiroz na Gal. Quadrado Azul, Lisboa - Até dia 20: www.quadradoazul.pt
EXPRESSO Actual de 17-06-2006
"A experiência da natureza"
Prática e interrogação da pintura de paisagem
Sem título, 2005-2006, óleo sobre tela, 190 x 250 cm
A paisagem teve uma importância fulcral na pintura do século XIX, em duas direcções em parte coincidentes: por um lado, a exploração sistemática do mundo, associando o inventário dos lugares, a comunhão romântica com a natureza e o exotismo das viagens; por outro, o trânsito da observação do natural e da pintura realista de ar livre, enquanto estudo apaixonado da natureza, à ambição da «pintura pura», que se irá entender como projecto analítico ou sistema autónomo e auto-referencial. No seguinte século não houve linhas de continuidade reconhecíveis como evolução de um género, mas o corte cronológico não tem a arbitrariedade do calendário, porque «fauves», expressionistas e cubistas continuavam a reinventar a paisagem. O espectáculo das trincheiras da Grande Guerra, essas outras paisagens de morte radicalmente inéditas, terá tido retrospectivamente uma decisiva influência no que se chamou crise da representação (com outras referências, o historiador Yve-Alain Blois dirá que «o luto tem sido a actividade da pintura ao longo do século»).
A alternativa aberta pelas abstracções viria a permitir novos recomeços. Nas últimas décadas do século XX, dois artistas que se associam à geração da arte pop, apesar da sua independência face aos estilos, fizerem importantes contribuições para a história da paisagem: Wayne Thibaud, desde os anos 70, com vistas de São Francisco (paisagens urbanas, «cityscapes») e do delta do rio Sacramento; David Hockney, desde os anos 80, mas em especial no final dos 90, com as estradas do seu Yorkshire natal e os panoramas do Grand Canyon. Em ambos os pintores, as liberdades com as convenções perspécticas e a visão em movimento proporcionada pelo automóvel transformaram-se em poderosas inovações.
Com a recente viragem de século e a recuperação da pintura como medium outra vez contemporâneo, o interesse pela paisagem voltou a estar na moda. Em geral, exploram-se mediações fotográficas com uma intencional arbitrariedade de efeitos pictóricos e ilusionistas, estratégia que se legitimaria num suposto paradigma estabelecido por Gerhard Richter. Entre nós, a exposição «Paisagens no Singular», em 1999 <ver em arquivo>, procurou adaptar discursos sem abdicar das fórmulas gastas («a concepção da arte como representação da realidade foi definitivamente superada», dizia-se).
João Queiroz era a presença inovadora dessa mostra colectiva e tem continuado a dedicar-se ao desenho e à pintura da paisagem natural com uma maneira própria de problematizar, na sua obra e também através de breves textos e de entrevistas, as condições de possibilidade e os meios dessa forma particular de relação com a natureza. Dessa atitude reflexiva que pode decorrer da formação em filosofia faz parte, como um aparente paradoxo, o sublinhar da importância do que na atenção prestada à natureza e na evocação ou transcrição dessa experiência, que é também corporal para além de ser visual, resiste à palavra e à compreensão conceptual.
Do seu percurso está ausente o inventário ou a descrição de lugares, que não são nunca referenciados, mesmo se pudemos saber que determinada série teve origem numa estada na Madeira. Suspeitando da ambição de representar como sendo uma «tentativa de domínio», tratar-se-á de tornar visível uma experiência sensorial e emocional de imersão na natureza, partindo da identificação com esta para algo de transcendente ou desconhecido (falou-de de exercício espiritual, de «vislumbres de transcendência»). Assim, Queiroz parece interrogar a distância que vai do acto «puro» de ver (de ver o mundo, ou a natureza, suspendendo o que deles se sabe) ao gesto da mão, à aparição da forma no desenho e depois na pintura, na sua dimensão aparentemente mais física e menos programada, que se realiza também nas condições de aparente espontaneidade gestual da pincelada sobre a tela. Suspende-se neste exercício de passagem do visto ao pintado a interpretação do objecto, e logo a responsabilidade de descrever ou representar (não distinguimos perto ou longe, árvore ou sombra, nuvens ou rochedos), tal como se desejou suster logo na observação do mundo a análise e a classificação do visível.
Na galeria do CAM mostram-se seis telas de grandes dimensões que se reconhecem como pinturas de paisagem - mas detém-se esta identidade no limiar do reconhecimento, como janelas abertas para algo de indizível. Nos 190 x 250 cm do seu formato, a horizontalidade convencional interrompe-se no corte abrupto de uma secção que torna mais notória a indeterminação de qualquer itinerário espacial, sem solo nem linhas de horizonte, ao mesmo tempo que o irrealismo da cor sublinha a dificuldade de nomear volumes ou objectos. O que não se deixa descrever, mas não aceita a ideia da abstracção, nem conduz aqui a uma situação de indiferença da imagem, propõe-se reactivar a intensidade emocional da pintura como relação com o mundo.
S/título, 2005/06. Óleo s/tela, 190x250 cm
«Pintura», Centro de Arte Moderna (de 13 Abril a 30 Setembro 2006)
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João Queiroz, Galeria Lisboa 20
Expresso 18-04-2003
Desenhos anteriores realizados diante do motivo ensaiaram a experiência de uma relação corporal com a paisagem, mais funda do que uma transcrição mimética do visto, ao pensar a específica fisicalidade do olhar, da mão e do material; outras pinturas, apoiadas em notações desenhadas ou na memória, procuraram antes sustentar-se e suster-se sobre a condição própria da aparição da forma, assegurando uma qualquer referencialidade reconhecível ou verosímil, mesmo que resultante de uma conjunção de momentos plásticos exercitados sobre a tela. Agora, um outro modo de pensar a representação (a sua crise e possibilidade) é investido numa maior desrealização da paisagem, praticada em simultâneo com a aparência paradoxal de uma precisão mais naturalista.
A relação entre a parte e o todo, por vezes entre a figura (tronco, rocha ou flor) e o fundo, entre a cor natural e «artificial», entre a indefinição do espaço e a legibilidade da sua construção, distanciam a imagem pintada de um sistema de conhecimento da natureza para se afirmar como pintura. A gama cromática antes aberta à extensão de valores estridentes e puros fecha-se agora sobre uma paleta surda de terras e amarelos abstractamente iluminados.
Não se trata de enveredar por uma paisagem imaginária ou irrealista, mas de experimentar mais radicalmente a diferença entre natureza e representação pictural. Distanciada da observação directa, bem como da mediação fotográfica que tem sido o suporte fácil da recuperação do «género», a paisagem é assim muito mais uma questão de pintura, num exercício densamente reflectido (conceptual) que é também aplicadamente trabalhado como disciplina oficinal - conjunção particularmente perturbadora para alguns olhares.
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João Queiroz, Sala Jorge Vieira
10/11/2001
É um imenso «Livro de Estudos» que se expõe, mas este parece surgir menos como uma experiência viva, praticada como a abertura (ou reabertura) de um campo de possibilidades sempre a descobrir, do que como a demonstração de uma impossibilidade contemporânea de uma verdade do desenho ou da recusa a aspirar à «Grande Arte» de que fala Manuel Castro Caldas no catálogo.
A dimensão reflexiva separa-se do investimento corporal, que aparecia como essencial ao exercício do desenho, e o resultado talvez se torne mais problemático do que problematizador. (Parque das Nações, até 18)
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