EXPRESSO de 04-02-95
"Má, muito má pintura"
A PINTURA MANEIRISTA
Centro Cultural de Belém
Vai ser preciso, mobilizando talvez o apoio da Cruz Vermelha, trazer a Lisboa umas quatro pinturas de Velazquez para tratar dos olhos dos portugueses, contrariando os efeitos fatais do excesso de má pintura que agora se mostra a pretexto do maneirismo ou, no Palácio da Ajuda, das magnanimidades de D. João V. Porque há perigos de contágio, num século XX que voltou a conceder ao país algumas qualidades picturais. E porque a incapacidade de discernir as qualidades plásticas e mesmo oficinais da pintura ameaça instalar-se em consequência das condições de promoção pública, grandiloquente e indiscriminada, de períodos históricos em que não fomos, definitivamente, bafejados pela musa da pintura.
Uma coisa é estudar a produção de épocas menos conhecidas, investigar documentações ignoradas, precisar atribuições e datas, restaurar obras degradadas, catalogar acervos históricos e apresentar os resultados dessas actividades, com a justa consideração da sua (menor) relevância estética. E outra, bem diferente, é ultrapassar a dimensão erudita em que esse processo deve decorrer, promovendo como acontecimentos «grand public» exposições que de facto não o são, nem merecem ser.
Gerar expectativas insustentadas, reclamar genialiades inexistentes, recorrer a cenografias espectaculares (na Ajuda), são tácticas que apenas geram a confusão de um público que não dispõe de um Prado ou um Louvre em permanência. Citando o exemplo parisiense, há que distinguir projectos destinados ao Grand Palais e ao Petit Palais, em vez de meter tudo no mesmo saco.
A exp. da Comissão dos Descobrimentos acolhida no CCB é uma produção erudita, fruto de um muito sério trabalho científico levado a cabo durante 15 anos por Vítor Serrão. É uma iniciativa marcante, mas não é uma exposição que interesse ao grande público, nem para a qual se devam arrastar milhares de crianças das escolas, como já se anunciou. Não se trata do «Triunfo do Maneirismo» como titulava um semanário sensacionalista — e quando antes se mostraram os esplendores do barroco também não era de pintura que se tratava, mas essencialmente de artes decorativas.
A reconsideração histórica e sociológica da «pintura no tempo de Camões» não precisa de se recobrir com valorizações estéticas precipitadas e não deveria isolar-se de um enquadramento factual e ideológico necessário à exacta compreensão deste período que se inicia exactamente no momento em que se instala a Inquisição (1536) e que se consolida no contexto da extrema rigidez de pensamento e de controle das linguagens figurativas imposto pelo Concílio de Trento. A «rebelião» que Vítor Serrão tanto acentua será uma vertente dramaticamente subterrânea, com afloramentos pontuais, mas os tempos eram, inequivocamento, de repressão e de imposição de programas catequéticos ferozes.
Também é improcedente a importação de tiques próprios de alguma crítica de arte contemporânea para defender a «reabilitação» desta pintura.
O que significa «anular um anterior academismo completamente esgotado» (V.S., entrevista ao«Público»), ou a referência «en passant» ao «esgotamento do formulário gótico-renascentista» (catálogo), se não uma visão vanguardista e mecanicista da sucessão dos estilos? Os melhores exemplos de uma informação maneirista ocorrem precisamente num pintor em que se conservam situações medievais, como Gregório Lopes.
Porquê tirar benefícios da ideia que Portugal «viveu nesse tempo um dos momentos mais 'à la page' da sua história»? E que «página» fatal era essa (a do «advento de uma ordem ideológica de carácter imobilista e intransigente», António Rosa Mendes, História de Portugal, dir. J. Mattoso, pág. 402), balizada pela prisão dos lentes do Colégio das Artes, em 1550, e a de Damião de Góis, em 1571?
Discutível igualmente é aceitar que o actual fim do milénio seja «uma era de valores neomaneiristas» (entrevista cit.) para sugerir equívocas circulações entre a contemporaneidade e o século XVI.
Nada disto prejudica, porém, a exaustividade da investigação historiográfica levada a cabo por Vítor Serrão e pela sua equipa, e especialmente a importância da publicação de um extenso catálogo que renova a informação sobre este período. Nem afecta a possibilidade de se encontrarem, nos cenários correctos de João Bento de Almeida, algumas raras obras preciosas — na zona inicial da exposição e nos sectores do retrato e do desenho — entre a abundância de uma produção média que é também medíocre.
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