A primeira exposição de um artista estrangeiro no novo Museu do Chiado e também a sua primeira co-produção internacional.
EXPRESSO CARTAZ 08-07-95 (Foi capa dessa edição)
«Esta arte de primitivos»
MARINO MARINI
Museu do Chiado
O Museu do Chiado e o Instituto Português dos Museus estreiam a sua primeira exposição de um artista estrangeiro e também a primeira co-produção internacional, associando-se ao Museu Réattu, de Arles, para apresentar um grande escultor italiano, cuja obra ocupou um lugar de destaque nas décadas do pós-guerra.
Marino Marini (1901-1980) foi, com efeito, um nome de celebridade crescente desde os anos 30 até ao final da década de 60, ombreando em muitas situações com a fama de escultores como Giacometti, Henry Moore e Germaine Richier (ou Calder e Arp), seus quase exactos contemporâneos — e teve também uma influência reconhecida na obra de artistas portugueses. Distinguido sucessivamente com os grandes prémios da Quadrienal de Milão de 1935, da Exposição Universal de Paris de 1937 e da Bienal de Veneza de 1952, o escultor italiano, que manteve ao longo de toda a vida uma paralela produção como pintor e gravador, entrou então nas colecções de museus de todo o mundo e perfilava-se como uma das figuras cimeiras de uma modernidade de tradição humanista reafirmada pela vitória sobre a barbárie.
No entanto, as décadas seguintes trouxeram um certo esquecimento de Marini, vítima do mesmo olvido que atingiu quase toda a produção artística italiana da primeira metade do século (e que algumas exposições recentes, na Royal Academy de Londres, em 88, no Palácio Grassi de Veneza, em 89, e no Rainha Sofia, em Madrid, em 90, contribuiram para fazer entrar em revisão), bem como de uma evolução da escultura contemporânea mais visível que parece ter remetido os grandes nomes da arte moderna para a condição de figuras terminais de uma história iniciada com as Venus pré-históricas e liminarmente encerrada. O retrato e a estatuária não seriam mais possíveis...
Na apresentação daquela exposição madrilena («Memória do futuro»), Tomás Llorens lembrava que «a história da arte italiana do século XX é irredutível ao que se poderia designar como o canon evolutivo da arte moderna». E, de Chirico e Carrá a Sironi e Morandi, de Medardo Rosso a Arturo Martini e a Marini, essa irredutibilidade é, de facto, indissociável da sua originalidade e grandeza.
No mesmo sentido, Germano Celant contrariava «uma leitura unidireccional da história como a que adoptou a cultura artística de origem anglo-americana», para sublinhar que em países como a Itália, ou a Espanha e o Japão — «que têm um forte cordão umbilical com a história e o seu progresso por extremos e contrários» —, «a tradição não se deixou derrotar pelo novo e pelo progresso típicos da mono-perspectiva puritana e liberal, mas antes continuou a ser um património íntimo da cultura, que crê no progresso por contradição e multiplicidade».
Por tudo isso, a forma de ver hoje a obra de M.M., objecto também de várias reconsiderações retrospectivas recentes (em Itália e na Alemanha, França e Japão) pode ser guiada, para além do mero reconhecimento como valor seguro de uma cultura reduzida à condição de patrimonio (morto?), por outros entendimentos em que intervêm quer a interrogação sobre os processos de rotação das visibilidades, quer a avaliação da importância da «resistência» de uma obra concreta, vista no tempo longo da sua evolução particular, ao que se considera o sentido evolutivo genérico (canónico e unidireccional?) da criação escultórica, devolvendo à dinâmica entre tradição e inovação o seu lugar essencial de condição de continuidade da criação artística.
Uma outra via, conciliadora, que prevalece nesta retrospectiva comissariada por Michèle Moutashar, de Arles, tenderá a situar M.M. como uma das ilustrações possíveis da crise daquela tradição da estatuária e do monumento, insistindo na leitura dos sinais da desconstrução da escultura presentes na sua obra, na detecção do que é a sujeição dos modelos históricos à fatalidade do fragmento e do inacabado, perante uma contemporânea impossibilidade da solidez do corpo inteiro, ou ainda na identificação da presença final da figura em desiquilíbrio e queda (dos cavaleiros aos «Milagres») como indício de um declínio fatal da verticalidade da escultura, crescentemente horizontal e mole, por necessidade evolutiva.
A produção de M.M. é, no essencial, a de um escultor mais dedicado à constância de um núcleo reduzido de temas — o retrato, a figura (a estátua) e os cavaleiros («combinação de corpos no espaço», diz o autor) —, do que à investigação analítica, e legível dentro de parâmetros formalistas, sobre as condições de existência «do discurso escultural», nas relações possíveis entre o seu interior e exterior ou com o espaço envolvente.
As suas obras não se impõem pelo lugar que ocupam numa cadeia unilinear de invenções, nem se deixam definir pela descoberta de uma qualquer fórmula original, e definitivamente repetida. Afirmam antes a irredutível vontade de afirmação da presença física e significativa de corpos construídos que imediatamente se referem à permanência de uma longa tradição (e não a uma ancestralidade a-histórica), recuando a referências tão primitivas como as da estatuária etrusca e pré-clássica para mais radicalmente afirmar uma positividade da escultura moderna como forma monolítica e como continuidade de valores simbólicos, da ordem do mito, da fábula, da história e da interrogação do presente.
Num contexto epocal marcado, primeiro, por exercícios de refundação primitivista, de referência africana ou oceânica, que marcaram a escultura das primeiras décadas do século no sentido de uma esquematização abstractizante, e depois pelos diversos «regressos à ordem», M.M. é um verdadeiro «primitivo» que tem a escultura de Matisse e Picasso por referência e que conhece as novas configurações expressionistas e cubistas, mas que, no quadro da modernidade italiana, se situa, de facto, numa via próxima da dimensão metafísica imprimida por Chirico e pelos artistas dos «Valori Plastici» à reflexão sobre o sentido da cultura moderna.
As suas figuras humanas e animais (as Pomonas, divindades itálicas protectoras das colheitas e emblemas femininos; os jograis ou acrobatas, personagens de um teatro da vida; os cavalos e cavaleiros, o touro) encontram desde o início uma presença formal e simbólica primitiva, através da qual o escultor questiona a continuidade da sua realidade arquetípica sob as novas condições da expressão artística moderna, tão distanciadas das convenções idealizantes do academismo oitocentista como do simétrico idealismo iconoclasta e vanguardista (os futuristas tinham decretado em 1910 a interdição do nu).
Num dos seus raros textos, de 1941, M.M. fazia algo mais do que, com uma serena sabedoria, distanciar a sua arte das imposições heróicas do tempo: «No fim de contas, o que é uma estátua, um retrato, um grupo, se não um brinquedo? Um brinquedo que é para a civilização o mesmo que o cavalinho de pau é para a criança. Um bronze, há que sabê-lo acariciar amorosamente, como a uma boneca. A arte é um jogo.»
Era uma outra forma, mais directa e mais essencial, de expressar aquilo que G.C. Argan definiu depois como a originalidade do artista: «Marini dedica-se à busca da génese histórica (da escultura) no núcleo semântico originário da forma plástica, esse ponto em que se separa da coisa de que é o duplo, adquirindo um significado autónomo.»
A importância da policromia, aplicada mesmo sobre o bronze, em admiráveis tratamentos das superfícies, e a particulariedade das suas escalas diminuidas que parecem responder por oposição às exigências da monumentalidade fascista, contraindo a figura para ganhar em solidez, são duas marcas fortes e originais da obra de Marini.
Mas outra dimensão essencial na sua escultura — embora nesta exp. apenas representada por quatro peças — reside na questão da semelhança (e do talento para restituir a semelhança de um rosto), perseguida ao longo de uma carreira em que o retrato corresponde a cerca de um terço (400 peças) da sua produção . Os retratos de Stravinski e de Mies van der Rohe (este de 1967) devem ver-se como admiráveis desmentidos a discursos que sacrificam uma das dimensões superiores da criatividade humana.
E mesmo se algo de incomodamente indefinível (a 'poesia', com aspas do escultor) se envolve nessa capacidade, ou talvez por isso mesmo, a palavra de Marini tem também um peso essencial: «No retrato sempre tentei dar, mais do que a expressão ou o carácter da pessoa — mesmo no que ela tem de mais comunicativo, no sentido menos externo —, a sua 'poesia'. Não há rosto humano em que esta 'poesia' não esteja como que encerrada, aninhada, solidificada num traço, numa proeminência, numa ligeira cavidade: o artista deve poder reconhecê-la e libertá-la. Para isso, ele é guiado pela sua sensibilidade, pelas suas qualidades instintivas de observação e penetração. Esta 'poesia', o artista deverá recompô-la plasticamente, ou seja, no caso particular da escultura, esta arte de primitivos, só poderá expressá-la na matéria previamente escolhida — bronze, pedra ou cera — e em relação com ela através da forma.»
Uma última nota têm de referir a qualidade da arquitectura expositiva criada por Margarida Veiga e a equipa do Museu. Mas também a insuficiência dos níveis orçamentais de produção e promoção desta exposição do Museu do Chiado, que conduziram à não tradução do catálogo francês, onde se inclui um texto de Raquel Henriques da Silva sobre os desenhos de M.M., bem como a inexistência de cartazes de rua ou de um programa de colóquios e outras sessões complementares.
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Mais tarde fui visitar o seu Museu em Florença: www.museomarinomarini.it
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