02-04-99 actual
Museu em viagem
(foto:Retrato de Senhora, de autor desconhecido, 1620-1640)
MAIS de 200 obras do Museu Nacional de Arte Antiga viajaram até à Alemanha e são apresentadas desde há uma semana na Galeria de Arte e Exposições da República Federal Alemã (Kunst-und Ausstellungshalle der Bundesrepublik Deutschland), em Bona. Depois de múltiplas participações em mostras no estrangeiro, com realce recente para a Europália-92, é a primeira vez que o MNAA se representa a si próprio e às suas colecções, o que sucede por iniciativa exterior e no âmbito de um programa de exposições que a galeria alemã vem promovendo com os principais museus europeus. A mostra anterior, sétima da série, acolheu o Petit Palais, de Paris, e a próxima, em Outubro, será dedicada ao Prado, concentrada sobre o tempo da corte de Filipe IV, com obras de Velázquez (no quadro das celebrações do quarto centenário do seu nascimento), Rubens e Claude Lorrain.
O projecto foi preparado ao longo de três anos, comissariado por José Luís Porfírio, director do MNAA, em colaboração com Agnieszka Lulinska, pela entidade anfitriã. Custeada pela galeria de Bona (dos transportes das obras aos convites à imprensa portuguesa), a operação envolveu restauros e limpezas de pinturas, bem como novos estudos sobre a colecção que deram origem à publicação de um catálogo de grande formato. O volume, que fica a ser o mais importante álbum sobre a colecção do Museu das Janelas Verdes, terá igualmente uma edição em inglês (Thames and Hudson) e, certamente, em Setembro, uma versão em português, patrocinada pelo Instituto Camões e com a chancela da Inapa.
A mostra prolonga-se até 11 de Julho, partilhando o vasto espaço da Galeria Federal, só até ao próximo dia 11, com uma mostra de excepcional importância dedicada à «Alta Renascença no Vaticano. 1503-1534 – Arte e Cultura na Corte Papal» (primeiro capítulo de uma série de três) e, mais tarde, com «Deuses e Heróis da Idade do Bronze – a Europa no Tempo de Ulisses» (7 Maio - 8 Agosto) e uma vasta retrospectiva de David Hockney, apresentado como o mais importante pintor inglês do séc. XX (28 Maio - 12 Setembro / dp. CANCELADA). Entretanto, a par do Museu das Janelas Verdes, outra mostra de iniciativa alemã acolhe no Museu de Arte de Bona (Kunstmuseum Bonn), contíguo à Galeria Federal, uma segunda representação nacional dedicada à arte dos anos 90, com obras de Julião Sarmento, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Luís Campos, Ângela Ferreira e Noé Sendas. Outros programas, patrocinados pelo Instituto Camões, alargarão ainda a presença portuguesa à música, à dança e à literatura.
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Organizada como uma antologia das melhores obras do acervo do MNAA, a exposição não conta com a presença de algumas peças de maior significado e risco de conservação, como os painéis atribuídos a Nuno Gonçalves, o tríptico de Bosch, a custódia de Belém ou o relicário de D. Leonor, cujas deslocações violariam os actuais critérios técnicos de segurança. Por outro lado, a selecção teve igualmente em conta o facto de o Museu permanecer aberto ao público, com o recurso a substituições por peças das suas extensas reservas.
Tratando-se de mostrar as colecções do Museu e não de dar uma visão histórica da arte nacional, a montagem articula uma selecção de peças portuguesas com as obras-primas internacionais, associando também objectos de ourivesaria, mobiliário, faiança e têxteis à representação principal da pintura e da escultura. O percurso, que em toda a primeira parte da exposição segue através de galerias que circundam o espaço de um claustro recriado no interior da nave do museu, no qual se apresentam peças de escultura de maior porte, foi dividido em nove capítulos históricos e temáticos, definidos por um roteiro que segue do século XII ao XIX, ilustrando quer a variedade das obras do acervo do MNAA, quer a evolução cronológica das escolas e dos suportes utilizados.
No texto introdutório do catálogo, do director do Museu, é proposta uma leitura compreensiva das obras seguindo um percurso de transformações estilísticas conjugadas com a mutação dos cultos e da sociedade, numa longa evolução marcada pelo alargamento dos contactos culturais e pela emergência dos temas profanos e dos novos géneros (o retrato, a paisagem, a natureza morta), desde a presença exclusiva da arte sacra até à crescente autonomia relativa dos artistas, ao tempo das convulsões e interrogações das primeiras décadas de 800, com que a mostra se encerra. Mas o final é ainda dedicado a um núcleo de obras não europeias que dá conta dos contactos portugueses com as culturas mais distantes («O Olhar do Outro») e uma última secção é dedicada à importante colecção de desenho do MNAA.
A marcar a entrada na exposição surge a presença emblemática de uma fonte manuelina, do início do século XVI, onde os rostos de D. Manuel I e D. Leonor, sua irmã e viúva de D. João II, terminam as formas entrelaçadas e ascendentes de duas serpentes; a simbologia da água, de origem pré-cristã, associa-se à evocação histórica do período de maior poderio de Portugal. Outra imagem em destaque, por ter sido escolhida por iniciativa alemã para cartaz e capa de catálogo, é um Retrato de Senhora de autor desconhecido, datado de 1620-40, que documenta, numa fórmula já quase ingénua, a persistência da tradição do retrato de aparato renascentista, iniciada em Portugal por António Moro e Sanches Coelho, depois dificilmente prosseguida sob o reinado dos Filipes. A projecção que lhe foi atribuída decorre das qualidades gráficas de uma imagem dominada pelo «tratamento planificado do vestido e a cor utilizada, o vermelho, (que) transformam a pintura num autêntico cartaz» (do catálogo). Por outro lado, para além da presença saliente, pelo número de peças expostas, do pintor Gregório Lopes, impõe-se nitidamente, a encerrar o último capítulo histórico e também o núcleo do desenho, uma larga representação de Domingos Sequeira, na sequência da sua recente mostra antológica («Sequeira. Um Português na Mudança dos Tempos», 1997).
O itinerário da exposição inicia-se com uma secção intitulada «Imagem e Culto», referente aos séculos XII-XIV, do românico ao gótico internacional, com obras de ourivesaria sacra e em especial de escultura, mais três tábuas pintadas de procedência italiana e espanhola. A seguir, a designação «Continuidades e Inovações» dá conta de uma demorada persistência nacional de registos medievais, mas dando especial relevo ao aparecimento em Lisboa, na segunda metade do séc. XV, de um centro de produção de uma pintura muito elaborada, fortemente documentado com as representações de S. Agostinho e S. Vicente atribuídas a Nuno Gonçalves e o Ecce Homo de mestre desconhecido, enquanto outras obras de Memling, Gérard David ou o pequeno painel de Rafael ilustram gostos e circulações internacionais.
Adiante, um espaço mais amplo que evoca uma igreja abre com o excepcional S. Agostinho de Piero Della Francesca e acolhe o Retábulo do Paraíso, de Gregório Lopes, diante de um tríptico da Escola de Colónia. «Limiares» inclui obras de Mabuse (?) e Holbein, de Frei Carlos e Francisco Henriques, enquanto a passagem à «Arte de Corte» corresponde a uma nova relação da arte religiosa com a encomenda cortesã, onde se destacam os medalhões de Della Robia e o retábulo de Santa Auta.
«Pecado e Expiação» é um espaço ocupado por um conjunto temático de obras-primas da colecção de pintura do Museu, da primeira metade do séc. XVI, onde três obras portuguesas de autoria desconhecida, o Inferno, O Julgamento das Almas e Retrato de Senhora com Rosário, dialogam com a beleza perversa da preciosa Salomé de Lucas Cranach e com os dois S. Jerónimo de Durer e Patinir (At. depois RECUSADA, em 2007/8), testemunhando outros contextos culturais.
«Maneirismos», a seguir, com um plural significativo da fluidez do conceito, inclui mais duas telas de Gregório Lopes (o Martírio de S. Sebastião e a Ressurreição de Cristo, do retábulo de Santos-o-Novo) e outra de Diogo de Contreiras, que são indicativas de uma particular passagem nacional do gótico final a fórmulas maneiristas, sem directa aprendizagem das referências clássicas. Outras situações apontam-se com o Retrato de Alexandre de Medicis, de Pontormo (?), o D. Sebastião de Cristóvão de Morais e obras de Luis de Morales, Bassano, Carducho e ainda Pieter Brueghel.
Entrando no século XVII, o espaço «Do Sagrado ao Quotidiano» abre com dois apóstolos de Zurbaran, diversificando-se depois com o retrato de Van Dick e outras peças flamengas de Elsevier e Pieter de Hooch, mais dois bodegons de Antonio de Pereda e outro de Josefa de Óbidos. «Espectáculo e Aparato» marca a Europa barroca e «rocaille» com a baixela Germain, Tiepolo e um retrato de Nicolas de Largilliere. Por fim, «A Mudança dos Tempos», o último capítulo cronológico, é dominado por obras de Hubert Robert, Claude Vernet, Fragonard e, em especial, pela presença já referida de Domingos Sequeira.
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