8/6/2002
"Mártires e eremitas"
Pinturas e esculturas das reservas do Museu de Arte Antiga numa mostra iconográfica
«A ESPADA E O DESERTO», Museu de Arte Antiga, até Setembro
Foi discretamente inaugurada e anuncia-se como uma exposição despretensiosa, montada em consequência de uma alteração de programação e recorrendo fundamentalmente a obras das reservas do museu. No entanto, «A Espada e o Deserto», construída sobre o duplo tema das representações do martírio (a espada) e do eremitismo (o deserto), evocativas dos primeiros séculos do cristianismo, é uma curiosa mostra iconográfica que reúne uma grande diversidade de obras de pintura e escultura dos séculos XVI a XVIII, portuguesa e estrangeira.
Destacados dos conjuntos retabulares, os episódios dos martirizados concentram-se na ilustração de momentos-chave das respectivas narrativas hagiográficas, envolvendo por vezes a mais sádica violência em cenas de imaginativo ou ingénuo dramatismo. Por outro lado, graças à presença da imaginária, quase sempre oriunda da colecção do comandante Ernesto Vilhena, às representações dos suplícios contrapõem-se as mais hieráticas presenças das mesmas figuras tratadas em escultura, simbolicamente codificadas com os respectivos atributos de martírio. No catálogo, o texto de José Alberto Seabra Carvalho e Maria João Vieira de Carvalho, comissários da exposição, é um pormenorizado guia que orienta o visitante a respeito dos diversos conteúdos hagiográficos e das especificidades de cada peça.
Entretanto, algumas obras podem ser destacadas do conjunto como acontecimentos ou novidades desta exposição. É, em especial, o caso de uma tela representando Maria Madalena penitente, que se descobriu agora ser uma obra de juventude de Domingos Sequeira, datável do período em que frequentou a Aula Régia de Desenho (1781-86) e por isso a mais antiga pintura que se lhe conhece. Uma escultura quinhentista representando São João Baptista, de provável origem alemã, adquirida em 2001, também tem aqui a sua primeira apresentação no museu.
No átrio que dá acesso à mostra exibem-se, extra-exposição, duas peças maiores que fazem parte do «Apostolado» de Zurbarán, São Paulo e São Simão. Depois, uma primeira galeria introduz as figuras masculinas dos apóstolos e primeiros diáconos martirizados, prolongada pelo núcleo das representações femininas, encerrando-se a mostra com o tema dos eremitas e ascetas.
Abre a série São João Evangelista, supliciado no caldeirão de azeite a ferver, a que, aliás, sobreviveu miraculosamente, com São Bartolomeu, esfolado em vida, Santo André, martirizado numa cruz em aspa, e Santo Hipólito, arrastado por um cavalo, estes dois em pinturas que pertenceram à Universidade de Coimbra. Depois, São Sebastião, num núcleo extenso que junta o mais conhecido martírio das flechas dos soldados de Diocleciano às muito mais raras representações do segundo e definitivo suplício, onde surge vestido de oficial romano e é sacrificado à paulada.
A extensa série de vítimas femininas inclui as ambíguas figuras de uma Santa Comba crucificada, numa imagem policromada, e de uma Santa Eugénia decapitada envergando o hábito dos carmelitas (antes inventariada como o seu homónimo masculino). Já Santa Bárbara surge elegantemente disposta junto à torre da sua clausura, enquanto duas tábuas de predelas atribuídas a Gregório Lopes representam aos pares as Santas Luzia e Ágata, Margarida e Maria Madalena com os seus atributos. Seguem-se Santa Apolónia, «que padeceu alegre multidão de tormentos», com a turquês e o dente que evocam a lenda; Santa Catarina decapitada, notando-se que é leite e não sangue que jorra; mais o episódio de Santa Úrsula e as 11 mil virgens, em duas telas que opõem uma versão erudita e outra freirática.
No capítulo dedicado ao deserto, tem uma larga presença o mesmo Santo Antão do célebre tríptico de Bosch, representado em obras menos vistas. Três painéis de um retábulo do século XVI próximo do estilo de Gregório Lopes narram a busca e o encontro com o que teria sido o primeiro eremita cristão, São Paulo de Tebas, seguindo à letra o relato de São Jerónimo. Três outras obras, já do século seguinte e com origem nos Países Baixos, testemunham descendências da imaginativa figuração boschiana das tentações vividas pelo santo.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.