Expresso 29-05-04
"Sob uma nova luz"
As novas galerias do Museu Grão Vasco dedicadas à pintura portuguesa dos séculos XVII a XX
Objecto de importantes exposições monográficas recentes, que foram da responsabilidade da actual directora do Museu e fizeram avançar o respectivo estudo crítico-historiográfico, Vasco Fernandes tem agora uma apresentação que torna mais nítida a necessária distinção entre o estilo próprio e a prática dos discípulos e seguidores, acompanhada por uma mostra sintética dos seus contemporâneos quinhentistas, com recurso a peças vindas das reservas de outros museus.
Esse é o itinerário que se cumpre no terceiro piso do antigo Paço dos Três Escalões, sob a luz forte mas velada das janelas que interrompem os muros graníticos, abertas à paisagem. Antes, o visitante percorre um piso ecléctico e historicamente abrangente, onde o antigo espólio é objecto de uma exposição muito selectiva. Editado para a inauguração, o Roteiro do Museu, inteiramente escrito por Dalila Rodrigues, fundamenta os critérios de montagem e estabelece pistas de leitura segundo coerentes narrativas temporais e temáticas.
Etapas cronológicas distintas, «Liturgia e devoção no final da Idade Média» e «Figurações do sagrado na estética barroca» são dedicadas à imaginária religiosa, com diferentes opções de espacialização dos objectos. Na primeira, onde domina a pedra, associam-se alfaias dos rituais litúrgicos, acentuando a pertença a um mesmo universo cultual antes de a recontextualização museológica as distinguir como obras de arte; na segunda, a utilização de plintos individualizados adequa-se ao predomínio da escultura de vulto e a profusão das peças coincide com a prolixidade dos programas catequéticos.
Dois núcleos breves pontuam o percurso: «Diáspora», com as aquisições recentes de um cofre indo-português de madrepérola e um pano de armar bordado a seda, da China, sinaliza os contactos culturais extra-europeus; «Além da morte» concede uma atenção específica ao culto das relíquias, e acompanha-as com uma intervenção de Pedro Tudela sobre a tradição do ex-voto, iniciando um programa de instalações temporárias. Colecções extensas no património do Museu, a cerâmica e ourivesaria e depois o mobiliário formam outros núcleos, focando os trânsitos entre função e decoração.
A pintura portuguesa dos séculos XVII ao XX ocupa uma sequência de três salas, aberta por uma marcação de géneros com a importante natureza-morta de Baltazar Gomes Ferreira, uma composição mitológica de Vieira Portuense ou um auto-retrato do chamado Pintor Gata, figura local. Depois encontra-se uma colecção intimista, com peças de escala e intenção doméstica, muitas vezes originais no âmbito da produção dos vários artistas, escolhidas com a cumplicidade sensível do primeiro director do museu, Almeida Moreira, vindo algumas do seu acervo pessoal.
O percurso oitocentista faz-se por núcleos autorais acertadamente aglomerados: Silva Porto, com realce para a rara visão nocturna duma estação de comboios, Marques de Oliveira e duas vistas do Sena em Paris, Veloso Salgado e um retrato de Teixeira Lopes, passando por Alfredo Keil, Sousa Pinto, Malhoa, Joaquim Lopes, até ao núcleo extenso de Columbano, com o seu mais original auto-retrato e o gosto arcaizante de Chaleira de Cobre, já de 1920. António Carneiro estabelece a fronteira temporal, ainda com lugar para um minúsculo e precoce Amadeu, num apontamento de feira minhota, e Eduardo Viana, em dois aspectos de Olhão, ficando em suspenso o curso problemático da modernidade, dada a irrelevância das aquisições que depois se fizeram.
No piso dedicado ao Grão Vasco, os 14 painéis do retábulo da capela-mor da Sé de Viseu, de autoria conjunta com pintores de origem flamenga, expõem-se reagrupados em duas fileiras no topo do percurso, numa aproximação ao seu inicial destino arquitectónico que gera uma situação de forte envolvimento físico na pintura, enquanto já se divisa à distância a monumentalidade de S. Pedro, emblema supremo do artista que precede os outros grandes painéis de Viseu. O restauro das molduras a ouro, a renovada montagem das predelas e o acesso ao reverso de dois dos grandes painéis qualificam a nova apresentação das obras no museu.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.