Arquivo, EXPRESSO de 3-7-99
"Humildes coisas"
A NATUREZA MORTA NAS COLECÇÕES ALENTEJANAS
Museu de Évora (até 11 Julho)
NÃO TEVE projecção institucional ou mediática a inauguração da exposição, mas ela será um dos mais sérios projectos recentes levados a cabo pelos debilitados museus nacionais. É certamente a primeira vez que é estudada a natureza morta como género específico da pintura, desde seus inícios nacionais no século XVII – embora apenas através de obras de colecções alentejanas.
Com este projecto, co-produzido pelo I Congresso Nacional das Confrarias Báquicas e Gastronómicas, o Museu alia o estudo e a projecção do seu acervo próprio a uma outra direcção de trabalho essencial e mais rara, a colaboração com outras colecções e o respectivo levantamento. O catálogo teve edição modesta, mas reúne estudos e notas às obras da autoria de José Monterroso Teixeira* e Joaquim Oliveira Caetano**.
O percurso da exposição abre com as pinturas de Josefa de Ayala ou de Óbidos e, diante delas, as do seu pai, Baltazar Gomes Figueira (ou do seu círculo), todas do acervo de Évora e oriundas da famosa colecção de frei Manuel do Cenáculo. Estabelece-se assim a evidência da aprendizagem espanhola do novo género e mesmo a dependência estrita de modelos definidos por Sánchez Cotán, pela disposição dos objectos sobre o parapeito ou janela em «trompe l'oeil», em Figueira, enquanto a presença de um cardo idêntico aos de vários quadros do espanhol da Cartuxa de Granada continua a motivar divergências sobre a autoria de uma tela antes atribuída a Josefa.
Depois desta entrada onde a natureza-morta surge com a frescura de uma prática experimental, mesmo se as aptidões eram limitadas, constrói-se um outro momento de particular importância, com três qualificadas presenças estrangeiras, de Jean Baptiste Weenix, holandês especializado na pintura de aves mortas sobre fundos de paisagem; de Michele dela Pace, dito il Campidoglio, pintor romano também do séc. XVII, cujas cestas de frutos não deixam de evocar o exemplo máximo de Caravaggio; e ainda de Mariano Nani, napolitano de carreira espanhola e influência flamenga, já do séc. XVIII, com que se ilustra o subgénero dedicado à caça. A primeira obra, Natureza morta com Aves, é do Museu de Portalegre e as outras duas são de uma colecção privada de Évora.
Outras naturezas-mortas, de Juan Fernández, com figos e uvas (também do Museu de Évora), de um anónimo flamengo, com frutos e búzios, de outro espanhol, já do séc. XVIII, este com duas telas de aves e de peixes, mais outra de um possível italiano, com uma curiosa salva com pêssegos e uma enganosa mosca, são também peças significativas que não encontram paralelo na produção portuguesa.
Para além de duas composições de gosto severo, com búzios e concha ou sapateira, de Joaquim Manuel da Rocha (1727-1786), ao qual se reconhece uma profícua actividade docente, a mais interessante produção nacional aparece marcada por sucessivos afloramentos de ingenuidade e regionalismo, que se insinua, com curiosidade ou graça, sobre as formações insuficientes e amadorísticas. É o caso das duas pinturas do Morgado de Setúbal (1750-1809), do Museu de Évora, de um conjunto de seis telas de autor regional, do séc. XIX e, em especial, dos três grandes painéis decorativos anónimos do séc. XVIII, que encerram a primeira galeria, com as suas insólitas cenografias e divertidas representações de dois cães, um gato e um papagaio.
A primeira galeria da outra ala da exposição especializa-se em composições florais, em que está mais presente o sentido alegórico que a natureza-morta pode assumir, quando não é «pura» especulação sobre as virtualidades da pintura, demonstração de virtuosismo ilusionístico ou estratégia decorativa. É aberta a secção de novo por Josefa de Ayala, com Cordeiro Pascal com Cartela de Flores, da colecção de Évora, seguindo-se outras imagens religiosas com cercaduras de flores, com o destaque evidente para Juan de Arellano, com as poderosas grinaldas barrocas, e também um armário pintado do séc. XVIII que serve de referência à ainda actual produção popular.
O percurso seguinte até à actualidade reduz o séc. XIX a um frouxo copo de rosas de Tomás da Anunciação e tem continuidade quase sempre penosa. De Luciano Freire mostram-se quatro modestos apontamentos e destaca-se naturalmente a Natureza-morta com Fruteiro de Abel Manta, já de 1965, exercício de aplicada devoção cezaniana, solidamente construído com gosto matérico e talvez algum humor na disposição das maçãs e bananas. Outra tela de Manuel Bentes (1885 -1961), Natureza-morta com Peixes e Frutos, pertencente à Câmara de Portalegre, lembra a necessidade de rever-se toda a sua obra.
Depois, para além de um intrigante Frei Miguel (1897-1983), observam-se duas curiosas peças da formação escolar (tecnologia da pintura) de Jorge Martins e Eduardo Nery, usando têmpera de ovo e caseína, encerrando a mostra Ana Marchand e Jacinto Luís. Se se tiver presente a relevância da natureza-morta ao longo do séc. XX – do cubismo à quase-abstracção de Morandi, com a actualidade triunfal da pintura de David Hockney e Avigdor Arikha –, o balanço recente, através das colecções alentejanas, só testemunha a debilidade da produção nacional, não a extinção de um antigo género.
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* "Pintar a inacção"
** "Contradições de uma maçã"
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