17-07-2004
1 - Dez anos
A deriva do Museu do Chiado
O Museu do Chiado (MC) que festejou dez anos não é o mesmo que se inaugurou a 12 de Julho de 1994. Poderia ser um bom sinal de recusa do imobilismo. Mas o que está em causa é a desaparição do seu original acervo histórico, do romantismo tardio de meados do séc. XIX aos anos 50 do seguinte, que ficou inventariado no catálogo publicado naquela data. Cristino da Silva e M. Ângelo Lupi, Keil e Silva Porto, Pousão, Columbano e Malhoa, Sousa Lopes e Eloy, não estão acessíveis em permanência, quando é essa a função legítima e insubstituível deste Museu. (Só os piores cegos pensam que a arte se conhece pelos catálogos.)
As duas galerias destinadas a mostras temporárias, onde se previu privilegiar a atenção à contemporaneidade, bastantes (com ligeiras invasões justificadas) para acolher mostras excelentes de Picasso e Marino Marini, no início de um alargamento de horizontes, devoraram entretanto todo o espaço. O MC foi-se esvaziando para dar lugar a mais um centro de exposições, em concorrência com os já existentes, sob a direcção de um comissário («curador»?) que trouxe da passagem pelo CCB o programa de exposições.
O que, de modo cada vez mais ostensivo, substituiu o projecto museológico matricial (que não estava condenado à eternidade acrítica) é, em geral, um exercício táctico sobre a circulação actual da arte, recortando a história e o presente em antologias ao sabor do gosto e interesses pessoais, de opções ideológicas ensimesmadas e da apetência pelas guerrilhas entre gerações ou «décadas» - inteiramente legítimas noutro contexto como intervenções de um crítico, não de um director de um museu nacional. Perante um meio da arte cada vez mais fechado sobre os interesses corporativos, os protestos dos visitantes ficavam na portaria.
O horizonte temporal do MC adoptado em 1994, que suspendeu uma continuidade já antes esboçada com variável critério, foi um compromisso associado à promessa de fazer no Porto o Museu Nacional de Arte Moderna (ou Contemporânea; as palavras têm sentidos instáveis), ao qual foi afectado algum do seu acervo mais recente, na era de Teresa Gouveia. Com a construção de Serralves, o Chiado ficou livre para voltar a alargar o seu calendário até ao presente - talvez uma acertada resolução, se se lhe estendessem também o espaço e os meios.
Em 1997 esteve previsto abrir um pólo do MC na Gare de Alcântara.
Em 1998 Guterres comprometeu-se a retirar o Comando Distrital da PSP da área contígua, e um acordo firmado entre os outros inquilinos do Convento de São Francisco assegurou que iria triplicar o espaço do Museu, a Faculdade de Belas Artes ganhava 5000 metros quadrados e também cresciam a Academia e o Governo Civil. Passaram os anos.
Dois governos depois, o já ex-primeiro-ministro voltou a prometer. No passado dia 12, o ministro cessante da Cultura despediu-se afirmando que «não é concebível que esta situação se prolongue por muito mais tempo» e recebeu o relatório de um grupo de trabalho presidido por Raquel Henriques da Silva onde se propõem locais possíveis para a construção da futura sede do Comando da PSP e uma segunda partilha de espaços do Convento, menos vantajosa para o MC. Vão passar mais anos e mais governos. Jornalistas sem memória voltarão a anunciar como novidade iguais promessas.
A exposição montada para o aniversário pretende ser uma síntese de um alargado meio século (1944-2004) que sucede ao tempo fixado no programa museológico de 1994, ilustrado por obras entretanto incluídas no acervo por compra, doação ou depósito. Os breves comentários que merece ficam adiados - também por falta de espaço.
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24 julho 2004
2 - «Autocomemoração», Museu do Chiado
O Museu do Chiado não expõe o que anuncia o título da exposição. Organizada para comemorar os dez anos desde a re-inauguração, só se apresentam algumas das obras que desde então entraram no seu acervo – poderia fazê-lo melhor ocupando por rotação os espaços de exposições temporárias, ou propondo articulações pontuais com as peças da colecção permanente. Insuficientes para balizar o itinerário prometido, é óbvio (mas não para o visitante desprevenido) que só se representam algumas das situações vividas em seis décadas e, por vezes sem se lhes fazer justiça, alguns dos artistas que as marcam . Todas as antologias são parciais e provisórias, mas a leviandade com que aqui se diz fazer história só ilustra um enfadonho e faccioso discurso crítico.
Poderia valorizar-se o dinamismo com que se ampliou o acervo – enquanto só Serralves parecia ter meios para aquisições e o Instituto de Arte Contemporânea fazia compras avulsas (alegadamente para o CCB). Incentivaram-se generosidades particulares, mas há razões para encarar com cautela doações e depósitos de obras de recentíssima data. Doar uma «cópia» ao Museu de peças produzidas em vários exemplares (em especial fotografias e vídeos) pode ser só um bom investimente para sustentar carreiras e estratégias de galerias ou «coleccionadores profissionais».
Mais penosa é a concepção da arte que se propõe através da montagem e dos seus capítulos, textos justificativos e comentários incluídos nas tabelas, subordinando os sentidos das obras a um argumentário teórico redutor e pretensamente explicativo. É toda uma atitude ideológica que fecha a arte sobre si mesma, num discurso sobre processos e linguagens, cortando todas as suas relações com o mundo e o real, para a submeter ao mais redutor dircurso formalista e especulativo.
Na «modernidade», diz-se, «sem uma dependência da realidade empírica do mundo, o objecto artístico conquista a sua autonomia e institui-se como um discurso sobre a essência do medium. A forma sublimada atinge a ideia pura.» Adiante, «a especificidade dos diversos media artísticos a que o objecto de arte se refere é ultrapassada a favor de um estatuto mais genérico: arte. O enunciado linguístico tornou-se a realidade estética operativa.» Tudo se reduz ao exame abstracto dos «diversos códigos ideológicos e formais que organizam o trabalho estético», mas, do princípio ao fim, depara-se com o erro escolar quando se lê em 02-44, de Lanhas, «a consecução da plena bidimencionalidade», ou sustenta que «tradicionalmente e durante o modermismo a categoria tempo foi absolutamente afastada das artes plásticas, confinadas à exclusividade de outra categoria: o espaço».
Quanto à sequenciação das obras, observe-se só que na pista da não-figuração iniciada com Lanhas - passando pelas relações inglesas (a «new generation») de J. Pinheiro e Ângelo, ou francesas («suport-surface») de Pires Vieira -, as peças de Calapez e Croft (a referência à paisagem, a partir de Sousa Pinto, e a presença do objecto arquetípico, a mesa) não têm entendimento possível.
Não há razões para comemorar: nos últimos quatro anos o Museu perdeu um terço dos visitantes (de 47 249 em 2000 a 30.834 em 2003).
Meio Século de Arte Portuguesa 1944-2004
Museu do Chiado,
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