Ponto de vista
PARA A AGENDA DA TRANSIÇÂO
Berardo, CCB, Chiado (a ampliação anunciada em 1998), Soares dos Reis
15 07 2000
1. Até 31 de Agosto permanece em exposição no Centro Cultural de Belém uma parte substancial da colecção de arte moderna e contemporânea do comendador José Berardo, ao mesmo tempo que o Sintra Museu de Arte Moderna exibe uma outra selecção do mesmo acervo. A extensão e a importância da colecção, única no País, estão comprovadas.
Entretanto, decorriam desde há cerca de um ano, reservadamente, conversações a «alto nível» no sentido de viabilizar a exibição em permanência da colecção nos dois locais, instalando um núcleo museológico fixo no CCB e dando sequência ao acordo firmado com a Câmara de Sintra, segundo uma partilha cronológica a definir. Estavam também em causa a intenção de acautelar o destino futuro da Colecção Berardo (evitando uma sempre possível alienação para fora do País) e a regulação dos vários aspectos decorrentes da colaboração entre o coleccionador e o Estado, incluindo o que diz respeito ao prosseguimento das aquisições (certamente por ambas as partes, articuladamente).
Talvez se deva encarar o assunto como o de maior relevância na área dos museus e das artes plásticas em Portugal. No momento em que o governo espanhol (conservador) procede ao reforço do triângulo dos grandes museus de Madrid, com a construção de novos edifícios para o Prado, o Museu Rainha Sofia e o Museu Thyssen – convém sempre olhar para a realidade da cultura «lá de fora» -, a Colecção Berardo é a oportunidade possível (não haverá outra) para, salvaguardadas todas as proporções, assegurar a presença em Lisboa de um acervo museológico de âmbito e qualidade internacionais (a questão não é só cultural; tem a ver com o turismo, os lazeres, a afirmação nacional, etc).
Não parece estar em questão a urgência de uma aquisição imediata da colecção, mas esse deveria ser o horizonte limite a considerar no quadro da negociação de contrapartidas e outras condições práticas. A instalação dos dois espaços museológicos permanentes no CCB - Museu Berardo de Arte Moderna (?) e Museu do Design – deverá, naturalmente, ser coordenada com o (ou mesmo pelo) Instituto Português de Museus e significará, com a manutenção de galerias para exposições temporárias, uma primeira solução sólida para o respectivo Módulo de Exposições, até agora deixado ao sabor de improvisações e cálculos irrealistas.
2. Depois do incêndio do Chiado considerou-se que a recuperação da área sinistrada exigia a reabertura (e a profunda renovação) do antigo Museu de Arte Contemporânea, que à data se encontrava encerrado. Em 1994 inaugurou-se o novo Museu do Chiado, graças à doação pela França do respectivo projecto de arquitectura, à capital cultural lisboeta e a outras acertadas vontades de um tempo em que ainda não havia, diz-se, política cultural.
A necessária ampliação do espaço do Museu, desde logo prevista mas então inviabilizada, veio mais tarde a tornar-se possível, a partir do momento em que o Ministério da Administração Interna aceitou transferir as instalações do Comando Distrital da PSP, que ocupa a área contígua do antigo Convento de São Francisco (com garagens e cantinas que põe em risco o património artístico aí conservado). A Câmara de Lisboa garantiu a cedência de um terreno alternativo para a reinstalação daquela entidade. O primeiro ministro empenhou-se na causa do Museu do Chiado, nomeou uma comissão de trabalho (que trabalhou com êxito) e, em Dezembro de 1998, foi firmado um acordo que envolvia todos os interessados, incluindo o Governo Civil de Lisboa, outro vizinho. O Museu e a Faculdade de Belas Artes estabeleceram um acordo com vista a uma partilha favorável às duas partes dos espaços que ficariam disponíveis após a saída da Polícia: mais 5000 metros quadrados para a FBA e triplicação dos espaços do Museu. A área do Governo Civil seria também ampliada. Os dois ou três milhões de contos necessários foram incluídos nas previsões dos fundos comunitários.
Apesar dos compromissos estabelecidos e da aparente cumplicidade partidária dos vários responsáveis políticos envolvidos, o projecto entrou depois numa preocupante zona de obscuridade. A resolução do impasse, que condena o Museu a esvaziar a sua colecção histórica quando apresenta mostras temporárias e o impede de prolongar o seu acervo até à actualidade, é uma das metas que se colocam à política cultural do actual governo.
A propósito - a preservação e beneficiação do imenso espólio bibliográfico pertencente à Academia Nacional de Belas Artes, instalada em condições degradadas no mesmo antigo convento, deveriam ser igualmente uma prioridade.
3. O Museu Nacional Soares dos Reis só a partir de Junho de 2001 deverá estar apto a integrar-se na programação do Porto Capital Cultural.
Mas o plano para a remodelação e ampliação das suas instalações fora lançado em 1989 por Teresa Gouveia e António Lamas, e um primeiro projecto arquitectónico foi entregue em 1991; o respectivo programa foi revisto no ano seguinte e Simoneta Luz Afonso anunciou a conclusão das obras para o final de 94. Já em 97, a seguinte directora do IPM, Maria Antónia Pinto de Matos, apontou o ano de 98 como provável termo dos trabalhos; a seguir adiou-se para 99, com financiamento do FEDER. Afinal, foi ainda preciso esperar pelo III Quadro Comunitário de Apoio e chega-se a 2001.
Quando o IPM foi criado em 1991, também já se encontravam em curso as obras no Museu Machado de Castro, em Coimbra, e outros projectos para a requalificação da rede nacional de museus estavam delineados ou aprovados. O único «acidente» não foi o mandato de Santana Lopes, mas as condições para a investigação jornalística nunca foram viabilizadas, a memória política é curta e a verdade não tem rimado com cultura.
Raquel Henriques da Silva, a terceira directora do IPM da era Carrilho, parece ter conseguido consolidar um programa global para a conclusão das obras desde há muito agendadas, mas outras lacunas persistentes estão ainda longe de assegurar a estabilidade do sector. São matérias que continuam por resolver, entre outras, a criação de um Centro de Reservas (várias vezes anunciado desde 89), a revisão dos quadros de pessoal e das carreiras técnicas (diploma previsto para o primeiro trimestre de 2000) e a adopção de programas condignos de aquisição de obras - cem mil contos/ano para o IPM e o Instituto de Arte Contemporânea (!?), verba sem acréscimo desde 1994; mais cem mil para Serralves, entre 1998 e 2002. A comparar com os quase 17 milhões de contos aplicados em quatro anos só em grandes «operações» pela Direcção-Geral de Belas-Artes do governo de Madrid (fora as aquisições específicas de cada museu).
Entretanto, sem que os museus sob a tutela do Estado tenham conseguido fornecer garantias de uma efectiva dignidade de funcionamento, a ideia da Rede Portuguesa de Museus foi projectada à dimensão do absurdo e da prepotência centralista. Lê-se na actual lei orgânica do IPM que este tem por «objecto», entre outros, «orientar técnica e normativamente os museus dependentes do Ministério da Cultura, bem como todos os outros museus».
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COM RESPOSTA DA DIRECTORA DO IPM
Museus em obras e em rede
19-08-2000
A directora do Instituto Português de Museus, Raquel Henriques da Silva, enviou ao EXPRESSO o seguinte texto a propósito do artigo «Para a agenda da transição», de Alexandre Pomar, publicado no «Actual» de 15-VII-2000.
O ARTIGO «Para a agenda da transição» merece-me um esclarecimento, um veemente desacordo e uma observação.
O esclarecimento diz respeito às obras de requalificação dos museus. Em relação ao Museu Nacional de Soares dos Reis, não é verdade que o «primeiro projecto arquitectónico (tenha sido) entregue em 1991». Nessa data, existiu apenas uma intenção de intervenção sem componentes especificadas nem sequer contrato com o arquitecto. Em 93, foi delineado o conjunto de intervenções a realizar, em sete fases, as primeiras das quais, abrangendo a requalificação do 1º andar e a instalação, em edifício anexo, dos serviços administrativos e de parte das reservas, foram concluídas em 94 e 95. Depois disso, existiram atrasos, relacionados também com a crise da direcção do Instituto aberta em 96, mas foi entretanto possível concluir o programa museológico para o 2º andar.
Desde 97, a equipa do arq. Fernando Távora elaborou o projecto para a sala de exposições temporárias e auditório, bem como o dos arranjos exteriores, e está a ultimar a museografia da exposição permanente de artes decorativas e a instalação da área de reservas no 3º andar. Falta ainda o programa final para as salas do piso térreo e a reconversão da área de restaurante, inicialmente previsto e que foi abandonado.
Em relação ao Museu Nacional de Machado de Castro, é importante esclarecer que as obras, em curso em 91, foram iniciadas sem projecto museológico, que a sua avaliação foi, muito correctamente, considerada desastrosa pelo Instituto Português de Museus, que se rescindiu o contrato com o arquitecto e que, em 1997, se teve de começar tudo de novo. Realizou-se, de acordo com as exigências da lei, um concurso internacional para escolha de novo projectista. Tendo sido seleccionada a equipa do arquitecto Gonçalo Byrne, julgamos vir a dispor de ante-projecto no decurso deste ano.
Gostaria ainda de esclarecer que, para a realização destas obras de considerável dimensão e responsabilidade patrimonial, o IPM, como todos os institutos públicos, está sujeito a exigências processuais morosas que determinam sucessivos concursos públicos e a sua aprovação prévia pelo Tribunal de Contas. Estes factos, incontornáveis, têm de ser considerados quando se crítica o tempo de realização dos projectos. Se dispuséssemos das condições excepcionais que permitiram construir-se o Centro Cultural de Belém, edificar a Expo ou lançar as obras do Porto 2001, teríamos certamente menos ou nenhuns atrasos.
O meu veemente desacordo diz respeito à opinião sobre a Rede Portuguesa de Museus (RPM). Não vou contraditá-la com outra opinião mas com duas ordens de factos. Em primeiro lugar, a competência do IPM «para orientar técnica e normativamente todos os museus» não significa mais do que idênticas competências, nunca questionadas nem consideradas «dimensão de absurdo e de prepotência centralista» que o IPPAR dispõe para o património edificado, os Arquivos Nacionais para os arquivos, o IPA para os trabalhos arqueológicos, ou o IPLB para as bibliotecas. O objectivo não é tornar os museus todos iguais nem sobrepormo-nos à desejável autonomia das tutelas mas fazer reconhecer e cumprir um conjunto inquestionável de requisitos definidores, em termos internacionais, da figura de museu.
Em segundo lugar, desde que a intenção de dar conteúdos à RPM foi enunciada, tem havido por parte das Comissões de Coordenação Regional, das Autarquias, de muitas outras tutelas de museus e, sobretudo, da maioria dos profissionais do sector, a maior receptividade e vontade de colaboração. Em geral, e ao contrário do que opina o Alexandre Pomar, todas essas instâncias consideram que o IPM deve elaborar orientações flexíveis mas claras sobre os procedimentos a seguir para requalificar museus ou criar novos; que deve dispor de meios para apoiar projectos particularmente relevantes, capazes de enriquecerem o tecido museológico nacional; que tem a obrigação indeclinável de obrigar as tutelas a cumprir requisitos técnicos e de meios humanos e financeiros para gerirem os seus museus.
Creio que seria curial que a opinião de um jornalista (...) não ignorasse a grande esperança, na verdade com dimensão utópica mas também com alguns meios de actuação, que o projecto da RPM tem criado entre os profissionais do sector e muitos organismos que gerem museus. Que não ignorasse também que não podemos esperar mais para começar a alterar o estado dos museus portugueses de que apenas 10% obedecem a exigências mínimas de funcionamento.
Finalmente, a observação. Sendo verdade que fui a «terceira directora do IPM da era Carrilho», parece-me inquestionável considerar-se que os objectivos programáticos e as linhas de actuação do Instituto têm, no essencial, mantido coerência e continuidade desde 1991, quando ele foi autonomizado.
Em relação à requalificação dos museus tutelados, ao programa Matriz para a informatização dos acervos, ao inventário fotográfico nacional de bens museológicos, à dinamização das lojas dos museus, ao aprofundamento do mecenato e da comunicação com os públicos e parceiros institucionais, à promoção de exposições temporárias, quase sempre acompanhadas de catálogos relevantes, pudemos continuar linhas de trabalho que nunca foram perturbadas, antes dotadas de reflexão e meios mais consistentes.
Sendo cedo para fazer o balanço dos adquiridos, creio que, como outros Institutos da área da Cultura, o IPM tem provado que há um lugar próprio para a sua actuação, que é um lugar eminentemente técnico, fundamentado numa visão de política cultural para o sector cuja enunciação deve em grande parte pertencer a quem nele trabalha.
RAQUEL HENRIQUES DA SILVA
Nota: António Lamas, então presidente do Instituto Português do Património Cultural, referiu-se longamente ao Museu Soares dos Reis numa entrevista concedida a Miguel Portas e publicada no EXPRESSO-Revista de 9-IV-1988, dando conta de um contrato já firmado com o arq. Fernando Távora para o estudo da respectiva remodelação. Em 26 de Março de 1991, o MNSR fez parte da lista dos equipamentos e monumentos que iriam beneficiar de uma verba de 14 milhões de contos ao abrigo do Prodiatec, recuperando-se assim diligências interrompidas no final de 1989. A 13-III-92, por ocasião da inauguração da exposição «Nos Confins da Idade Média», foi referido um plano de remodelação global do MNSR em cinco fases, a primeira das quais então já adjudicada e parcialmente realizada. Na edição do IPPAR Dar Futuro ao Passado, de 1993 e relativo ao triénio 90-92, F. Távora apresenta um plano de intervenção faseada, referindo que se encontra concluída a primeira fase de obras, que «contemplou a beneficiação dos pátios, a sua ligação por escadaria e a construção da cafetaria, loja, novos sanitários e dos dois novos acessos verticais previstos.» A actual direcção do IPM tem vindo a pôr em execução, a reorientar e a concluir projectos de renovação dos museus a seu cargo, que, em muitos casos, estavam há muito anunciados ou iniciados. Justificar-se-ia certamente a publicação de um Livro Branco sobre as promessas, os impasses e os adiamentos da atribulada década de 90. A.P.
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