ARQUIVO, EXPRESSO de 30-10.99
"Os rostos do poder"
A ARTE DO RETRATO
Fundação Calouste Gulbenkian
(Até 16 de Janeiro)
AS OBRAS de conservação do Museu Gulbenkian, que forçaram, pela primeira vez em 30 anos, o seu encerramento, proporcionam a próxima apresentação no Metropolitan Museum de Nova Iorque de uma escolha do melhor da sua colecção («Only the Best», conforme o lema do fundador) e também justificam que outra parte do seu acervo continue a ter visibilidade num diferente local da Fundação, a galeria principal da sua Sede, através de um projecto expositivo a que foi dado carácter sectorial e temático.
Anton von Dyck, «Retrato de Homem», cerca 1621-27
O retrato foi o tópico escolhido, com restrição à produção europeia – a colecção permitiria iniciar o percurso pelo Egipto faraónico e representar a civilização islâmica –, mas com abertura a uma ampla apresentação de peças de Artes Decorativas, com as quais se traduz a diversidade de interesses patrimoniais do fundador e também se proporciona ao visitante «a aproximação aos ambientes dos retratados», como diz no catálogo João Castel-Branco Pereira, director do Museu. O título «A Arte do Retrato. Quotidiano e Circunstância» refere esse propósito de contextualização, que ao longo da mostra irá conjugar cenograficamente o retrato de aparato com o fausto das peças de mobiliário e dos serviços de mesa, ou, por momentos, confrontar os adereços convocados pelas representações pintadas com a presença física de objectos afins. É o caso da conjunção de uma estatueta feminina de terracota de procedência italiana com uma idêntica figura escultórica presente numa pintura de Moroni, do par de candelabros de prata produzidos por François-Thomas Germain para a imperatriz Isabel I da Rússia (vendidos pelo governo soviético em 1929, como sucedeu com várias telas de primeira importância) que é mostrado junto ao retrato dos pais do ourives francês feito por Nicolas de Largillière em 1736, ou do riquíssimo traje masculino de seda prateada exposto junto de um retrato a pastel da autoria de Maurice-Quentin de La Tour, de 1745.
Já no final do percurso, um conjunto de peças de Lalique (à margem do tema antologiado, mas centrado na representação idealizada da mulher) dá testemunho de um dos núcleos mais ricos do Museu, ao mesmo tempo que ilustra o contexto simbolista do anterior fim de século, junto a uma muito diversificada sequência de retratos que, depois dos realismos de Manet e Degas, em que se manifestavam renovados entendimentos de antigos mestres, e do impressionismo exemplar de Renoir (Retrato de Madame Claude Monet, c. 1874), se encerra com as esculturas de Carpeaux e Rodin, em frente de uma pintura de Boldini (O Pintor Brown e Família, de 1890), sacada às reservas do Museu. Este é um vibrante testemunho de modernidade, na escolhida informalidade de um instante fotográfico com que se representa o quotidiano da vida urbana do fim de século, em que o dinamismo da composição se encontra com a agilidade da execução e com a despreocupação de uma mundanidade burguesa triunfante – à revelia das convenções académicas e também à distância das inquietações vanguardistas que o século seguinte viria privilegiar.
A conjunção dos retratos e das Artes Decorativas, bem como a periodização do percurso, contou com um grande investimento nas condições cénicas da montagem, da qual foi encarregado o arquitecto belga Paul Vandebotermet, que tivera larga intervenção nas exposições da Europália e foi também responsável pelo Museu do Design no CCB. Sem compartimentar a ampla galeria como se fossem as salas fechadas de um museu, o que proporciona uma circulação fluente entre as sucessivas etapas históricas da mostra e diversas situações de aproximação e confronto entre obras distanciadas no tempo, o design do espaço procurou valorizar a abertura aos jardins e, entre «quotidiano e circunstância», com bastante pompa também, diferenciou os cenários de cada um dos núcleos, começando por assinalar o intimismo dos primeiros retratos medievais identificados como patronos dos Livros de Horas, junto às medalhas renascentistas. A seguir encena-se com austeridade a quase galeria de pintura onde, com Van Dick, Rembrandt e Fraz Hals, se estabelecem alguns modelos maiores do retrato, para logo depois se evidenciar a ostentação da riqueza exigida pelas estratégias da teatralização do poder. Menos conseguido é o espaço final da galeria, especialmente consagrado a um núcleo inglês que passa do séc. XVIII ao XIX, com o «Grande Estilo» de Joshua Reynolds e o retratismo convencionalizado pela Royal Academy, que algo labirinticamente dá depois passagem à segunda metade de oitocentos.
Entretanto, se a embaixada enviada a Nova Iorque inviabilizou a presença de algumas obras com entrada certa em qualquer antologia – como o Retrato de uma Jovem de Ghirlandaio ou Helena Fourment de Rubens –, a exposição foi alargada com pinturas de outras proveniências, num gesto de sentido prospectivo quanto ao património português que é também significativo de uma vontade de abertura ao exterior dos projectos do Museu Gulbenkian. Do Museu de Arte Antiga veio o Retrato de D. João I, de autoria desconhecida, e também três das obras que Calouste Gulbenkian lhe doara em 1951, retratos de Van Dick e de Largillière, onde curiosamente contrastam a sobriedade e o intimismo austero com o gosto exteriorizado pelo espectáculo social, embora a convencionalidade da encomenda não diminua a intensidade da segunda pintura, e ainda outro de Reynolds, na retórica consagração de um militar.
De entre as obras oriundas de colecções particulares, o Retrato Equestre do 3º Duque do Cadaval, de Pierre-Antoine Quillard (c. 1704-1733, pintor régio de D. João V) é apontado por Nuno Vassalo e Silva como «o mais notável retrato de aparato executado em Portugal na primeira metade do séc. XVIII»; enquanto o Retrato de Princesa de Holstein como a Deusa Diana, atribuído a A. R. Mengs, é um curioso e ingénuo testemunho das modas do tempo. Adiante, o Retrato da Duquesa do Cadaval e Filhos, pelo veneziano Domenico Pellegrini (1804), fixa outro modelo de elegância cortesã, que influenciou Domingos Sequeira, enquanto o Retrato do Duque de Palmela e Família pelo vienense Ferdinand Krumholz (1847) é uma «conversation piece» que aparenta surpreender a intimidade doméstica com uma minúcia hiperrealista.
É a função social do retrato, a sua relação com a representação do poder, que a escolha inicial de Gulbenkian e a concepção adoptada para a montagem sublinham. De Van Dick e Rembrandt a Degas, com possíveis prolongamentos contemporâneos, seria possível seguir outras ambições, na busca da singularidade de um rosto e da singularidade da pintura.
O catálogo inclui um ensaio de José Gil e análises sectoriais de Jean-françois Lhote, Luís de Moura Sobral, John Hayes e Raquel Henriques da Silva, para além de comentários detalhados sobre todas as obras.
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