EXPRESSO CARTAZ 06-11-98 (actual, p. 9)
"A arte da história da arte"
A colecção de Roberto Longhi, o grande historiador de arte italiano, exposta pela Fundação «La Caixa» em Madrid
Caravaggio, «Rapaz Mordido por um Lagarto», no centro de uma colecção que vai do séc. XIV até Giorgio Morandi
ENTRE as actuais exposições de Madrid, uma é particularmente rara: é dedicada ao historiador de arte italiano Roberto Longhi (1890 -1970) e à sua colecção pessoal de pintura. É a primeira vez que o acervo conservado na Fondazione di Studi di Storia dell'Arte Roberto Longhi, abandona a última residência do historiador em Florença, apresentando-se sem os desenhos, mas em condições de visibilidade superiores às da «villa» Il Tasso, entre as estantes e outros móveis da Fundação, e também depois da limpeza ou restauro de cerca de metade das obras expostas.
A Fundação «La Caixa», que foi sede de importantes mostras de arte contemporânea e cuja programação se abriu recentemente a um horizonte histórico mais alargado, acolhe a colecção até 7 de Janeiro, sendo esta ainda apresentada em Oviedo, até final de Fevereiro.
Com um total de 86 obras, que vão do início do séc. XIV, desde os primitivos bolonheses que Longhi identificou, até meados do actual, com um núcleo excepcional de oito telas de Giogio Morandi, de quem foi amigo pessoal, a mostra é um reflexo exacto das orientações preferenciais seguidas pelo historiador nas suas investigações e também a prova da vastidão e diversidade dos seus gostos. O quadro de Caravaggio, Rapaz Mordido por um Lagarto, é sem dúvida a peça mais conhecida da colecção (existe uma idêntica versão autógrafa na National Gallery de Londres), embora façam também parte do acervo outras peças de grande nomeada, de Guido Reni, Claude Lorrain, Gaspard Dughet ou Watteau, mas o itinerário proposto impõe-se por si mesmo para lá da notoriedade dos autores ou do reconhecimento canónico das escolas, tornando contagiante aquilo que foi «a faculdade de exaltação estética» de Longhi e a «paixão da pintura» que é referida logo no título da exposição.
Como «expert» e historiador, a quem se ficou a dever um muito extenso trabalho de atribuição e identificação de autorias, Longhi pôs em destaque o papel das tradições locais de áreas menos investigadas, de Bolonha e também de Ferrara, Cremona, Úmbria e Assis, bem como o interesse de muitos mestres menores, esquecidos das sínteses históricas. Também como «connoisseur», valorizou as obras excêntricas em relação às normas estabelecidas e as personalidade revolucionárias ou marginais («ex lege», fora da lei), como Caravaggio, que a historiografia relegara para segundo plano, estabelecendo uma longa linha de continuidades naturalistas que lhe permitia reconhecer a importância da orientação realista como facto constituinte dos movimentos artísticos dos séc. XVI ao XIX.
Na exposição, destaca-se inicialmente a presença desses primitivos bolonheses, com pequenas tábuas deliciosas de Pseudo-Jacopino di Francesco, Simone dei Crocifissi e Jacopo di Paolo, de uma original e popular índole narrativa. Outras obras de Ottaviano Nelli, Colantonio, Gerolamo di Benvenuto, Butinone, Aspertini ou Lorenzo Lotto estabelecem a excelência e a diversidade de uma primeira galeria que avança até meados do séc. XVI, e onde se impõe também o pequeno grupo de pinturas representativas do maneirismo do Piemonte, com Il Moncalvo, e em especial da Lombardia, com Il Cerano, Procaccini e Il Morazzone. Estes últimos são apresentados por peças dedicadas ao martírio de Santa Ágata, onde é patente a sensualidade da pintura em paralelo com a ambiguidade erótica do tema.
Mais extenso é o espaço atribuído a Caravaggio e aos caravaggistas dos séc. XVII-XVIII, acompanhando a génese e desenvolvimento do naturalismo barroco, com obras excelentes de Borgianni e Saraceni, os cinco Apóstolos do não identificado Mestre do Juízo de Salomão, Caroselli e Barburen, todos participantes do primeiro naturalismo romano, ou ainda de outros círculos, como Mathias Stomer, Caracciolo, Mattia Preti e Assereto. No final, expõem-se os quadros dos seus amigos Carlo Carrá, Filippo de Pisis, Mario Mafai, Ennio Morlotti e as naturezas mortas e as paisagens, mais raras, de Giorgio Morandi, em que Longhi viu a continuidade da «pintura pura» no séc. XX.
O catálogo inclui, além da reprodução do acervo e informação sobre cada obra, sintetizando o historial das atribuições, importantes textos de discípulos e colaboradores de Longhi, o espanhol José Milicua e a actual presidente da Fundação, Mina Gregori, ambos responsáveis pela exposição; publica-se também o prefácio de David Tabbat a uma recente tradução norte-americana de textos do historiador, o qual constitui uma magnífica apresentação da respectiva obra e a defesa da sua revalorização face à desconfiança que mereceu nos meios germânicos e anglo-saxónicos («O olho eloquente: R.L. e a crítica histórica da arte»).
A actividade de Roberto Longhi como historiador, iniciada nos anos 10, ao mesmo tempo que intervinha nos debates contemporâneos defendendo Boccioni e os Futuristas (opondo-se mais tarde à Pintura Metafísica), atravessou seis décadas e firmou-o como a figura mais destacada da história da arte em Itália neste século. Publicou estudos sobre Piero della Francesca, a Officina Ferrarese (de Ferrara) e Caravaggio, além de inúmeros artigos que se reuniram, a partir de 1961, nos 14 volumes, por vezes duplos, das suas obras completas. Igualmente decisivas foram as grandes exposições que organizou, «Mostra del Settecento Bolognese», em 1935, e depois, entre 1951 e 1958, «Mostra di Caravaggio e dei Caravaggeschi», «Pittore della Realità in Lombardia», «Arte Lombarda dai Visconti agli Sforza», em Milão.
Nos seus escritos sobre arte, Longhi foi também um escritor brilhante, considerado como um dos maiores prosadores italianos do século, embora tenha sido sempre, em parte por isso mesmo, pouco traduzido para outras línguas. A sua concepção da identidade entre crítica e história, e a procura da equivalência da obra de arte visual na expressão literária, favoreceram os ataques contra a «tendência novelística» dos seus escritos, ao mesmo tempo que a influência crescente da escola vienense da história da arte e a da iconologia derivada de Panofsky pareciam relegar a sua orientação, inicialmente formalista, para o lugar de uma sobrevivência da anterior da tradição historiográfica da «pura visibilità».
A investigação de Longhi manteve-se fiel à ideia da centralidade da obra de arte no trabalho historiográfico, defendendo sempre a necessidade do encontro directo com os originais e a sua leitura como «documento falante», sem descurar a investigação documental e a crítica filológica, mas considerando que só a verificação do que «diz» a própria obra pode confirmar a veracidade de um documento. Como recorda Mina Gregori, a colecção de Longhi «foi uma parte integrante do seu modo de entender o exercício crítico como uma investigação em constante presença da obra de arte». A evolução da historiografia fez-se em grande parte em sentido divergente, mas os excessos das interpretações abstractas viriam depois a merecer as reservas de Gombrich, ex-presidente do Instituto Warburg, reconhecendo «o carácter ilusório (elusiveness) da significação». Ao afirmar que «não é por ter muitos significados que algo é uma grande obra de arte; é porque é bela» (em Ce que l'Image nous Dit), Gombrich parece fazer-se eco do primeiro mestre de Longhi, o norte-americano Bernard Berenson (1865-1959), para quem «o sentido da qualidade é, sem dúvida, o requisito mais inestimável para quem pretenda tornar-se um entendido», acrescentando que o discurso da qualidade não pertencia à ciência.
Longhi foi um «connoisseur» e um «expert» (a tradução como conhecedor e especialista fica longe do sentido exacto) antes de ser um historiador - como recomendava o seu mestre Pietro Toesca: «primeiro conhecedores, depois historiadores». As suas lições têm hoje uma nova actualidade, de que é exemplo a apresentação da colecção em Madrid.
Comments