Já tinha escrito umas inconveniências a propósito da colecção BES ou BESart, usando o espaço discreto dos comentários ("Aquele salonismo não ajuda a ver: é a arte oficial de hoje. (...) a espuma dos magazines, uma caderneta de cromos..."), e depois voltei ao assunto, quase por acaso, a propósito das memórias do ano de 2008. Tentei sempre evitar o tema porque cada qual faz o que quer em sua casa e o dinheiro é deles (o que me sacam já foi reciclado, não me sinto com direitos especiais a ter opinião). Mas nunca deixei de pensar porque é que aquilo, colecção e prémios, corre sempre tão mal (é verdade que outras coisas correm melhor: foi o BES que patrocinou a exp. do David Goldblatt em Serralves, obrigado BES).
A hipótese que me parece mais adequada tem a ver com o erro fatal de pretender isolar a fotografia enquanto entidade específica e, ao mesmo tempo, ter como orientação o "gosto" ou a lógica social do meio da chamada arte contemporânea (que não é a arte actual mas o "estilo" contemporâneo).
A expressão lógica social é aqui usada num sentido que envolve as regras do seu mercado (desde logo e simultaneamente galerístico, museológico e coleccionista - um mercado unificado e sem distâncias entre esses círculos antes diferenciáveis, sem o recuo que separava a oferta quotidiana e o destino museológico); o seu sistema de cooptação e legitimação (o pequeno mundo dos críticos-curadores, que circulam entre galerias, museus e colecções privadas, quando não acumulam responsabilidades simultâneas nos três planos); e a partilha de um nível de distinção (cultural e social) que ostenta a arte contemporânea como hobby, círculo de convivência mundana e investimento financeiro (tudo isto também conjugadamente).
Se se abordam os suportes fotográficos com a lógica da circulação, das emergências e das consagrações, dos interesses da arte contemporânea, não tem sentido isolar esses objectos (ou suportes ou processos com origem ou só de remota condição fotográfica) de outros objectos, processos, materiais, etc que caracterizam a arte contemporânea enquanto "estilo": o ready-made e o objecto apropriado/reproduzido, a impressão serigráfica ou digital, o cinema e outras projecções ou emissões de imagens, e também a pintura, ou o quadro. Os objectos fotográficos de exposição ou instalação foram-se equiparando aos outros objectos de arte, tradicionais ou recentes, e deixaram de constituir uma classe com uma identidade específica. Todos eles ganharam a autonomia que os define estritamente como objectos de arte* e passaram a ser vocacionados para o espaço de exposição, o armazém do coleccionador e as reservas do museu - e esse destino, essa intenção (mais ambição que intenção), tornou-se constitutiva da sua identidade, muito mais do que a sua natureza processual: captação fotográfica, criação informática, reprodução mecânica ou fabrico artesanal-industrial (manual, oficinal, laboratorial, etc).
*e em especial objectos de arte-depois-do fim-da-arte, no sentido de A. Danto
(continua)
"Estilo"?
Talvez "Categoria estética", "Paradigma Estético", "Realidade Estética", "Género", sejam expressões mais apropriadas, de acordo com as considerações de Nathalie Heinich, "Le Triple Jeu de L'art Contemporain", para um certo tipo de arte que se faz, que se tem feito, e que cria dores de cabeça a muitos que se recusam entender certos objectos, certos factos, como tal.
Posted by: Pedro | 01/03/2009 at 18:56
Obrigado Pedro, pela contribuição, e é agradável saber que há mais gente a ler francês e a ler a diligente Heinich.
Socióloga, não lhe importa esclarecer o que para si diferencia ou sobrepõe o artístico e o estético, utilizando este como um impreciso adjectivo que aqui qualifica sem qualificar os termos categoria, paradigma e realidade. Aliás, ela própria traduz categoria estética como "um certo tipo de arte", sem mais especificação, e escreve muitas vezes "paradigma" entre aspas porque o conceito passou a multiplicar-se sem cuidado.
"Estilo" é uma noção que se foi tornando mais ampla e mais imprecisa que tendência, corrente, movimento (entende-se como instância de recepção e já não como norma), e dá pano para mangas a sua proximidade com maniera/maneira, modo e moda, ou gosto - e também a sua presença na expressão "estilo de vida". "Género" é que me parece sem sentido, e a N.H. apenas justifica essa proposta pelo que diz ser a posição homóloga da actual arte contemporânea e da antiga pintura de história: mais sustentada pelas instituições públicas que pelo mercado privado e situada no topo da hierarquia em matéria de prestígio e de preço (pp.10-11) - é pouco.
Para N.H., aliás, "o mundo da arte tornou-se uma espécie de sociologia em acto" (p. 335 - parece ser deformação profissional): "a arte contemporânea forma hoje um mundo altamente especializado, um universo autárcico, remetendo para uma tradição tão específica que só é acessível a um pequeno número de "connaisseurs-experts", muito longe das expectativas ao mesmo tempo estéticas e éticas do grande público, e também muito longe da experiência de universalidade que estrutura o sentido comum da arte" (p. 303). O complot, o "delito de iniciados" do Baudrillard não está longe.
Outra coisa: não se trata de "recusar entender" mas de recusar aceitar, de recusar algumas coisas, de escolher. Como tudo pode ser e é arte (desde a absorção da arte dos loucos, dos primitivos, das crianças, dos amadores, das artes populares, já antes da "descoberta" do ready-made, enquanto exercício crítico e dandismo, tornado depois um "género" - e esse sim é um género), distinguir, avaliar e escolher tornou-se imprescindível face ao "não importa o quê". Não há fronteiras fixas nem limites da arte, nem definições substanciais da arte contemporânea, nem contraposição de paradigmas. Há decisões de pertinência e/ou qualidade, há escolhas pessoais com ambição de legitimação partilhável, talvez com a ambição de uma possível universalidade.
Posted by: Alexandre Pomar | 01/04/2009 at 01:58