Arquivo * EXPRESSO Revista de 11-Nov.-95 (pp.112-114) por ocasião do programa "A MAGIA DO MÉXICO"
Manuel Alvarez Bravo
"O real mágico"
Este homem tem a idade do século e transporta toda a memória do México.
Cresceu com a Revolução, ao lado da Catedral de México, sobre ruinas pré-colombianas. Encontrou Tina Modotti em 1927 e correspondeu-se com Edward Weston, acompanhou Diego Rivera, Orozco e Siqueiros, fotogrando os seus frescos, trabalhou com Eisenstein em Que Viva México!, em 1931, conviveu com Paul Strand, expôs com Cartier-Bresson em 1935 no Palácio de Belas-Artes de México, conheceu Breton em 1938, que o integrou em exposições surrealistas, colaborou com Luis Buñuel e John Ford. Raramente mostrados, alguns retratos dão conta desses encontros, mas as suas fotografias não se vêem como registo cronológico de uma vida.
É antes o México, com a presença viva da sua história mais arcaica, com a dignidade altiva das suas tradições e dos seus índios que Manuel Álvarez Bravo fotografa, de um modo que nunca é exactamente documental mas que exprime, muito mais do que se o fosse, toda a dimensão colectiva de um povo — por facilidade de linguagem, dir-se-á: toda a mágica natureza de um país. Essa magia de que Antonin Artaud, depois de viver vários meses na Sierra Madre entre os Tarahumara, em 1936, foi outro dos intérpretes: «No México existe, apegada ao chão, submersa nas correntes de lava vulcânica, vibrando no sangue índio, a realidade mágica de uma cultura cujo fogo muito provavelmente pode voltar a avivar-se com relativa facilidade e em sentido material. Este México que está renascendo mostrar-nos-á o que há a fazer para que estes mitos renasçam».
No Centro Cultural de Belém, mostrada num espaço de exposições habitualmente dedicado à pintura (mas inaugurado por outro fotógrafo latino-americano, Sebastião Salgado), a obra de Álvarez Bravo aparece justamente como a expressão moderna e mais comunicativa do que, nos pisos inferiores, se vê como vestígio arqueológico do México antigo, como tradição popular ou como circunstancial criação plástica, no caso da pintura épica dos muralistas.
Mas não se deve limitar Álvarez Bravo à condição relativa de fotógrafo do México. Ele não é apenas o maior fotógrafo de uma história nacional, mesmo se nunca trocou o seu país por Nova Iorque; é um dos maiores fotógrafos de sempre e um dos maiores artistas do século XX. A retrospectiva, com 176 trabalhos e uma montagem excelente, na sequênciação das fotografias e no discreto «design» arquitectónico de João Paulo Conceição, está à altura da sua obra imensa. Mas poderiam ser 303 fotografias como na exposição de Paris, em 1986; ou 400, como no México em 1972.
Aos 93 anos (nasceu em 2 de Fevereiro de 1902, na Cidade do México), Don Manuel esteve em Lisboa a acompanhar a montagem e a inauguração, e ainda trouxe a tiracolo uma pequena máquina automática, que usou para fotografar o CCB, seduzido pela sua arquitectura. Recusa-se às entrevistas, irrita-se quando lhe pedem que explique em duas palavras a sua «concepção de fotografia», mas, já depois das formalidades oficiais, continuava a percorrer as salas da retrospectiva, apoiado no braço da mulher, detendo-se diante de cada fotografia, comentando-as, recordando as condições concretas em que as fez.
Em 1987, tinha vindo a Coimbra com uma primeira antologia que igualmente se mostrou em Cascais, no Palácio da Cidadela — vejam-se os artigos então publicados no EXPRESSO por António Sena, em 7-11-87, e por Jorge Calado, «Os sonhos de Álvarez Bravo», em 21-11-87 —, mas nunca se dirá que a sua obra ficou vista. As fotografias de Álvarez Bravo, agora mais numerosas e visíveis na grande longevidade da sua criação — e ele é um dos raros eleitos cuja produção tardia conserva a frescura das primeiras obras —, convidam a uma permanente redescobeta, pela sua perturbadora intemporalidade ou «para perceber os mistérios da 'evidência' da fotografia», como escreveu A. Sena.
UM SINAL, UM SILÊNCIO
André Breton procurou associar Álvarez Bravo ao surrealismo, mas o percurso do fotógrafo tinha-lhe sido independente e manter-se-ia exterior ao movimento. Uma só fotografia, A Boa Fama Dormindo, de 1938, foi reconhecida como surrealista pelo autor, que a realizou expressamente para uma exposição organizada por Breton. Mas o poeta foi um dos seus melhores comentadores: «Onde Álvarez Bravo se deteve, onde ele se demorou a fixar uma luz, um sinal, um silêncio, é onde bate o coração do México e também onde o artista pôde pressentir, com um discernimento único, o valor plenamente objectivo da sua emoção».
O encontro com Cartier-Bresson, em 1934, é igualmente um enigmático caso de proximidade artística. A afinidade existente entre as fotografias de ambos justificou a sua exposição conjunta em 1935, mas Álvarez Bravo já antes definira a sua própria identidade artística. A descoberta da «rua como uma arena de aventura e de fantasia, velada apenas à superfície pelo verniz da rotina quotidiana», como diz Peter Galassi, tornara-se possível com o uso das pequenas máquinas e era comum a diversos fotógrafos no final da década de 20, quando o experimentalismo e esteticismo da «Nova Visão» dá lugar a um novo interesse pela fotografia mais prosaica do documento médico e policial, do instantâneo amador ou anónimo.
O labirinto poético da cidade oferecido à visão surrealista era também o reino do «fantástico social» apontado por Pierre Mac Orlan, que não era surrealista e considerava os repórteres fotográficos («visionários da objectiva») como os herdeiros de Atget. O «choque de contrastes» de Leger juntava-se às qualidades da percepção instantânea e lírica de Kertesz, Munkacsi e Germaine Krull.
Álvarez Bravo, no México, tem um itinerário paralelo. As suas primeiras fotografias conhecidas datam de 1924, ano em que compra a primeira máquina e começa também a vender os primeiros retratos ao colegas de emprego, no Ministério das Finanças. Don Manuel recorda:
«A primeira influência de visão devo-a a Hugo Brehme; Picasso e o seu cubismo enfrentaram-me com outro tipo de realidade. Brehme desencadeia as fotografias pitorescas; Picasso, o rarismo, as fotografias raras. A segurança alcanceia-a mais tarde, quando Tina Modotti me mostrou as fotografias de Edward Weston» (in José-Miguel Ullán, «Ráfagas», catálogo, Madrid 1985). Outra referência reconhecida é Atget.
Ao fotógrafo alemão Hugo Brehme, autor do livro México Pitoresco, de 1923, e dono de um estúdio famoso em México, ficou a dever Álvarez Bravo o primeiro contacto com os segredos da câmara escura e a decisão de se fazer fotógrafo. Mas também lhe tomaria por herança uma ética da fotografia que nasce da simpatia pela população indígena e pelas suas formas próprias de vida, que hoje se diria marcada por uma concepção ecológica do mundo. O respeito humanista que revelava pelos índios que retratava, sempre conscientes da presença do fotógrafo, tinha correspondência, entretanto, noutro fotógrafo latino-americano tardiamente reconhecido, o índio peruamo Martín Chambi (1891-1973).
Para Álvarez Bravo, que saira da escola aos 13 anos e era um autodidacta interessado pela música, a pintura e a literatura, seguiu-se ao contacto com Brehme a descoberta de Picasso através dos livros. Terá sido o cubismo e outras informações das vanguardas europeias que o orientaram para uma atitude experimental que se alinhava com as pesquisas da «Nova Objectividade» internacional. A primeira fotografia exposta no CCB, Jogo de Papel, de 26-27, é exemplo dessa exploração da forma até à abstracção escultural, prosseguida com Jicamas (batatas doces), de 29, enquanto Monte de Lenha e Rocha Coberta de Liquen, ou, antes ainda, Carvão, de 1924 (no livro Muito Sol, que acompanha a mostra sem ser o seu catálogo), são logo a demonstração de que na realidade das coisas encontradas se abre a passagem para o outro lado do real. Nessas obras se reconhece a influência do realismo de Weston e se adivinha a criação de outro continente poético.
Com Tina Modotti, que conhece em 1927, Álvarez Bravo participa da atmosfera politicamente explosiva do tempo, mas sem especial empenhamento militante — é ele quem a acompanha ao porto quando é expulsa em 1930 e ela deixa-lhe a câmara de grande formato e o emprego junto dos Muralistas. Esse trabalho de reprodução dos frescos interessou a Don Manuel: «Já não se tratava de adivinhar o tempo de exposição, mas de cuidar ao máximo da precisão». A escolha dos fragmentos a fotografar ensinou-lhe as regras de composição plástica e a possibilidade de renunciar ao emprego na «Contaduria» libertou-o para a sua obra pessoal.
O REAL E O SONHO
A exposição não segue um curso cronológico, ainda que comece pelas mais antigas fotografias dos anos 20: Cavalo de Madeira, de 28, Dois Pares de Pernas, de 28-29, são logo «objects trouvés» que abrem caminho a muitas outras imagens dentro da imagem, encontros de acaso onde o real quotidiano se mostra como território da metáfora e do sonho, como Manequins Rindo, anos 30, Parábola Óptica, 31, ou Os Agachados, de 32. Uma estranheza que não se extingue na anedota ou no insólito, e uma construção da poesia que nunca se reduz ao sentimentalismo das efusões líricas, tão frequentes na mesma tradição fotográfica da rua.
«Com os elementos mais simples, somados, conjugados voluntária e, as mais das vezes, involuntariamente, mas captados sempre com uma intuição poética fulgurante, M.A.B. torna possível que ante as suas melhores fotografias nos encontremos frente a verdadeiras representações do irrepresentável, frente a verdadeiras evidências do indizível» — escrevia o poeta Xavier Villaurutia num catálogo de 1945.
Octavio Paz é outro exemplo da afinidade reconhecida pelos poetas perante as fotografias de Álvarez Bravo, que se prolonga, aliás, nos títulos das obras, como paralelo domínio da palavra: «Na arte de M.A.B., essencialmente poética no seu realismo e nudez, abundam as imagens, simples na aparência, que contêm outras imagens ou produzem outras realidades». E no poema «Cara al tiempo»: «Os títulos de Manuel não são cabos soltos: são flechas verbais, sinais acesos. O olho pensa, o pensamento vê, o olhar toca, as palavras ardem» — «do olho à imagem a linguagem (ida e volta)/ Manuel fotografa (nomeia) essa fenda imperceptível entre a imagem e o seu nome, a sensação e a percepção: o tempo.»
Na sequência das dez salas da exposição, reconhecem-se difusos núcleos temáticos (as mulheres, os retratos, o trabalho, os cemitérios), séries de motivos recorrentes (as janelas, as piteiras, os cães), sequências organizadas de imagens (o Operário em Greve Assassinado, entre o Sepulcro Violado e o Túmulo Florido), por vezes distanciadas por décadas. As escadas ritmam a sucessão das obras, as imagens do sagrado popular juntam-se à estranheza quotidiana, a frontalidade altiva dos retratos realistas dos índios (Señorita Juaré, Margarita de Bonampak, Señor de Papantla) confronta-se ora com os retratos dos artistas e intelectuais, ora com a convocação hipnótica do oculto. O trabalho do sentido, em cada imagem e em cada título, prolonga-se sempre no modo de expor.
É pela afirmação da objectividade fotográfica, por uma herança formalista (evidente no domínio plástico da composição e dos contrastes da luz e sombra) inscrita no campo do realismo (o retrato, a cidade, a realidade quotidiana, mesmo quando ela é encenada), que Álvarez Bravo constrói o significado múltiplo das suas imagens e torna manifesto um segundo grau da fotografia. O subjectivismo ou o fantástico, a visão de um mundo interior ou a revelação de uma natureza metafísica, não são nunca o seu caminho, mas sim a colagem dos sinais, «a identificação do visível e do invisível, do literal e do metafórico» (J. Calado), a fusão dos opostos: o testemunho e o sonho, o humor e o desejo, a vida e a morte.
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