Expresso Actual de 07- Maio -2005
«Continuo a afiar o lápis»
Em «Far Cry», um livro e uma exposição a inaugurar hoje em Serralves, Paulo Nozolino faz o balanço de 50 anos de vida e de 30 de fotografias
A exposição de Paulo Nozolino inaugura-se hoje em Serralves. Como o livro homónimo, Far Cry, co-editado pela Steidl, de Göttingen, é a síntese de um trabalho que é habitual ver referido como um dos mais originais entre a fotografia das últimas décadas. A beleza das imagens é inseparável da gravidade de uma visão do mundo. De quem se sente a viver «um pós-guerra qualquer» e dá forma a um grito profundo.
«Não tenho pressa. Estou interessado no que é eterno, no que ficará cá quando eu morrer»
O que é esta exposição?
O desafio era rever o trabalho todo, mas não queria fazer uma retrospectiva, porque não tenho idade para isso. Tenho 30 anos de trabalho e 50 de vida, acho que ainda é cedo de mais. Pretendi fazer um apanhado do que tinha sido importante ao longo de todas as séries que fiz e tentar manter uma ordem cronológica nessa escolha. Na Maison Européenne de la Photographie (Paris, 2002)*, mostrei uma primeira antologia que foi um teste para esta. Era uma exposição muito críptica, porque o espaço era reduzido, e eu quis depurar tanto que para muitas pessoas foi incompreensível.
A selecção foi muito radical.
Isso é um costume meu: tirar tudo aquilo que está a mais, tirar a carne e deixar só o osso.
Agora teve muito espaço.
Nas grandes exposições, corre-se o risco, quando ultrapassamos as 80 imagens, de começar a ser uma «overdose». Parti primeiro para uma selecção de 156 imagens e depois reduzi-as a 80. É uma necessidade quase visceral de concentrar as coisas, de não ter fotografias que se repitam, e quando se repetem é de propósito, para haver uma circularidade dentro da sequência e voltarmos a uma espécie de ponto de partida.
O percurso é autobiogáfico?
A minha fotografia é autobiográfica. Ou melhor, deixa de o ser, ou eu deixo de a assumir como tal, a partir de 1994 - que foi o ano em que visitei Auschwitz -, para se tornar numa coisa que espero que seja muito mais universal do que pessoal.
Tornou-se mais dramática a relação com o mundo?
Até eu ir a Auschwitz, a minha fotografia tem um peso diferente, depois começo a compreender que ela tem de ir para outro lado, não naquilo que estou a fotografar, porque o conteúdo não mudou essencialmente, nem mudou a técnica, nem a maneira como fotografo, mas mudou o ponto de vista. Digamos que a seguir a Auschwitz se afunilou o túnel dos meus interesses. Deixei de sentir necessidade de fazer fotografias que eram bonitas - entre aspas - para passar a fazer fotografias que eram necessárias. Vemos os filhos crescer, somos confrontados com os problemas de explicar o mundo que eles têm pela frente. Temos de dar defesas aos nossos filhos, temos de reagir, de compreender o mundo em que vivemos e de dar a ver às pessoas aquilo de que elas não se deverão nunca esquecer.
O balanço que faz é negro?
Não acho que seja terrível. É o nosso tempo, é o que herdámos e o que estamos a viver. Vivemos muito melhor do que se vivia no século XIX, mas temos outros males; não se morre de tuberculose, mas morre-se de «overdose». Os venenos diferem, os perigos são outros, mas, no fundo… é a vida.
Nunca foi fotojornalista...
Não, fui sempre autor.
Agora há um maior sentido de intervenção?
Eu não diria de intervenção, é sobretudo de esclarecimento para mim próprio sobre a história, sobre esse grande mistério que é a história, e revisitar o passado para mostrar pistas para o futuro. Tenho andado a trabalhar sobre a Europa, o que é o espírito europeu, a cultura europeia, e Auschwitz mostrou-me o local onde eclodiu o mal. É o próprio local do mal, o horror total. Eu tinha vivido livre de pesos históricos, mas a partir daí só posso pensar o que faço como uma fotografia pós-Auschwitz.
Foi esse o objectivo do projecto «Solo»?
O projecto não está acabado, é um «work in progress». Há dois tempos que se sobrepõem: quando estava a fazer o Penumbra, ao fim de 12 anos de viagens no mundo árabe, dei-me conta, em pleno Iémen, num café, a olhar para um homem, que o meu verdadeiro objectivo era tentar compreender a Europa. Era tempo de voltar aos velhos fantasmas. Isto aconteceu em 1995. Um ano antes, tinha visitado Auschwitz, e isso já estava no meu inconsciente. É nessa altura que ganho o prémio de Vevey (na Suíça), que me permitiu viajar na Europa e investigar um bocado mais, à minha maneira.
É então que crescem os formatos das fotografias?
Em 1997 fui convidado pelo Ricardo Pais a fazer uma exposição sobre Veneza no Teatro São João. Quando fui confrontado com o espaço, achei que a única maneira de fazer ali uma exposição era com provas grandes, uma coisa que até aí eu era completamente contra. Tanto o assunto como o local me obrigaram a isso, e gostei imenso do resultado. Logo a seguir surgiu uma encomenda dos Encontros de Coimbra, que coincidiu com um período muito difícil da minha vida: uma ruptura, o deixar de beber, uma depressão nervosa. Parti para Sarajevo num estado deplorável, e aquilo que trago, que deu origem à exposição «Tuga», foi um marco muito importante na minha vida. Essa exposição marcou o princípio de toda uma nova maneira de começar a trabalhar, já ao nível da tomada de vistas.
Houve então uma coincidência com as novas condições de exibição da fotografia?
Quando expus em Arles, em 1986, com o Martin Parr, o Bruce Gilden, o Max Pam e toda uma nova geração de fotógrafos, o François Hebel tinha-me aconselhado a expor grandes formatos. Nessa altura estava a expor «Limbo» e disse que não queria monumentalizar aquelas imagens, antes pelo contrário, porque eram fotografias íntimas. Mas as grandes provas não são uma coisa nova: o Martin Parr mostrou então grandes provas, e o Cartier-Bresson fazia exposições nos anos 50 com provas de dois metros. Há, a partir de fins da década de 80, um retomar da fotografia em grandes formatos pelos artistas plásticos.
É uma exigência do mercado da arte?
Não sei se será uma exigência do mercado. Não leio a coisa dessa maneira. Aquilo a que se chama fotografia plástica, feita pelos artistas, é normalmente de uma tal pobreza de conteúdo que houve necessidade de a tornar monumental, de fazer da coisa mais pequena e trivial um objecto de adoração, um ícone. Isso está presente na fotografia de imensa gente. O Gursky expõe em três metros uma prateleira de sapatos Prada; não pode haver coisa mais fútil, e daquele tamanho torna-se totalmente absurda e monumental, mas no fundo não deixa de ser interessante, porque é uma constatação da sociedade de consumo e do estado das coisas. O facto de ter aumentado o tamanho das minhas fotografias não mudou nada para mim. Continuo a dar uma importância enorme ao conteúdo das imagens, e não é pelo facto de elas serem grandes que estou a fazer uma coisa diferente. O problema não está aí, está em aguçar o olhar e em atingir aquilo que ainda não foi atingido. É um contínuo afiar do lápis.
E aparecem os dípticos, que são um novo tipo de obras...
Isso aconteceu em Mulhouse, que foi um projecto de residência, ao pé de Estrasburgo, a meias com o Stéphane Duroy, em que estive várias semanas em reportagem durante dois anos. É uma região que foi francesa, depois alemã, outra vez francesa… É um epicentro da Europa. Era extremamente difícil encontrar equivalentes visuais para tudo aquilo que sentia naquele local e para o que queria mostrar. É em Mulhouse que começo a sentir que uma imagem já não chega, que tenho de fazer um díptico para explicar uma situação. Na exposição «Tuga» tinha montado as fotografias em bloco, em resposta ao espaço das Caldeiras e por uma razão formal: era como um prédio, uma ruína que nos caía em cima... olhava-se de baixo para cima e sentíamo-nos pequenos. Nos dípticos e polípticos, a lógica é outra: eles dão uma força outra às imagens, diferente da montagem linear, que tem sentido para muitas coisas mas que para outras não faz sentido nenhum.
No seu trabalho têm muita importância as encomendas e a ideia de reportagem...
Reportagem é um nome que eu dou para me meter num estado de espírito quando vou a algum sítio para trazer algo; chamo a isso reportagem como poderia chamar missão; os franceses dizem «partir en mission». Não concebo a ideia de turismo, nunca viajaria se não fosse para tirar fotografias. As encomendas surgem a certa altura da minha vida como resultado da incapacidade que os editores tiveram de colocar as minhas imagens. Eram confrontados com o que eu fazia, gostavam imenso, mas não tinham condições de as encaixar e arranjaram sempre maneiras de sugerir o meu nome a pessoas que me deram carta branca e liberdade de fazer aquilo que queria. Tornei-me autor porque a minha fotografia não cabia em nenhum nicho, nem no jornalismo, nem na fotografia de arte - entre aspas. Era um produto híbrido, uma visão muito pessoal das coisas, muito negra, muito pessimista, em que ninguém estava particularmente interessado. A não ser algumas pessoas.
Como é que são essas viagens de trabalho?
Tem de haver disponibilidade total para a fotografia, ela não permite voltar às sete da tarde para casa para jantar ou para dar um biberão a uma criança. Tens de andar oito a dez horas por dia e de te entregar a isso de corpo e alma durante uma semana, duas, três. As condições ideais são, efectivamente, as da viagem, porque estás confrontado com paisagens novas, caras novas, novas atmosferas. Tens de te levantar cedo, fazer uma sesta a meio da tarde, voltar a trabalhar pela noite dentro. E andar a pé, andar a pé. Não sei como poderia fazer de outra maneira, porque a minha fotografia não é encenada, não parto de uma ideia, não estou a fazer fotografia de estúdio, não desenho as minhas fotografias antes de as fazer, de modo que sou tudo menos um conceptual. Eu reajo às coisas que vejo e procuro ir para sítios que avivem a minha sensibilidade. Necessito do real, trabalho a partir do real, o real é a minha fonte. Para o encontrar tenho de ir à procura dele, e o confronto maior que temos connosco mesmo é essa solidão da marcha e da procura. É nas ruas sórdidas das cidades deste mundo que vemos o que é verdadeiramente a realidade. O resto é aquilo que eles nos dão através do tubo catódico, o que eles nos querem fazem crer. Mas nada, nada, substitui a vida, o conhecimento não substitui a vida.
Porque regressou a Portugal?
Porque me apaixonei. E a minha vida é mais importante do que o meu trabalho. É indiferente o sítio onde vivo, pois há sempre aviões ou comboios.
É possível continuar uma carreira internacional a partir do Porto?
Sou uma pessoa de agir, depois o que acontecer acontece... e sei que tenho uma boa estrela. Nunca gostei de forçar nada nem ninguém; se há convites é porque há quem esteja verdadeiramente interessado no meu trabalho. Nunca me preocupei muito com a carreira, nunca quis entrar para a Magnum, nunca quis fazer parte de grupos elitistas e tive sempre uma posição muito individualista em relação à fotografia. Não faço parte de nenhum grupo e, francamente, não vejo nada parecido com o que faço. Tenho vindo a fazer sempre o mesmo trabalho, nada mudou. A única coisa é ter agora um pouco mais sucesso que tinha há dez anos, mas é tudo.
Como se não tivesse pressa?
Não tenho pressa, todo o meu sistema de trabalho é precisamente o intemporal, estou interessado no que é eterno, no que ficará cá quando eu morrer. As minhas fotografias querem-se intemporais, eu quero poder olhar para elas hoje da mesma maneira que olhei há 20 anos. Esse é o teste da durabilidade das coisas e esse é que é o meu tempo. É um não tempo. Não tenho pressa e não há sítio para chegar. Não é por expor em Nova Iorque ou em Berlim que se é mais do que aquilo que se é. A única coisa que sei é que se é tão bom como a última fotografia que se fez, como a última exposição ou o último livro.
* "Nada", Maison Européenne de la Photographie, Paris 2002 (ver tx)
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