Arquivo * EXPRESSO Actual de O6-Set.-2003 (pág. 41)
"Entre as ruínas"
Uma descida aos infernos em fotografias e poemas
Entre temporadas, o vazio das agendas é propício a que se recupere a oportunidade de falar sobre um objecto que fica a marcar o ano, mas que nestas páginas se deixou passar em silêncio, por acidentes de calendário. Não uma exposição, mas um livro de poemas e fotografias, de palavras e imagens reunidas sob um mesmo título, sem que de ilustração ou comentário se possa falar. São dois discursos que se encontram numa relação de cumplicidade, que se cruzam e mutuamente se provocam e se iluminam, mesmo se o percurso é o mais possível nocturno.
Nuez começa por ser uma produção editorial de rara qualidade, envolvendo também a cumplicidade do editor Paulo da Costa Domingos e a excelência de uma casa impressora, a Guide - Artes Gráficas. O próprio Nozolino se ocupou do «layout», em colaboração com o também fotógrafo Stéphane Duroy, companheiro de um «projecto» sobre Mulhouse, na Alsácia, e vizinho de exposição quando no ano passado mostrou na Maison Européene de la Photographie, em Paris, uma retrospectiva do seu trabalho (outra está em preparação para Serralves, no próximo ano). Com Rui Baião, uma primeira associação aparecera há quase vinte anos, na capa de Mix Dixit (1984), com o mesmo editor e o poeta Al Berto, com quem Nozolino então também colaborou em outras edições preciosas como O Último Habitante, de 1983, e A Seguir O Deserto, de 1984.
Publicadas sem legendas que identifiquem locais ou datas, inéditas em livro, as imagens sucedem-se a acompanhar os poemas como um trajecto extremo através da mais negra realidade do presente, numa radical descida aos infernos. Depois de «Nada», o título que Nozolino deu à sua exposição em Paris, onde o auto-retrato íntimo coexistia com um diagnóstico sem complacência sobre o estado actual do mundo, em Nuez desaparecem as fugazes visões de evasão ou de esperança que antes fotografara.
A sequência, que é aqui, por vezes, também montagem de imagens, como sucede nos painéis compósitos que Nozolino tem exposto, constrói um discurso de uma violência visual no limiar do insuportável, onde o rigor da composição, a profundidade das texturas impressas, a tensão entre as formas construídas pela luz, a beleza possível, é sempre um passo mais na denúncia do mal. Mais forte que a nudez da verdade, em «nuez» soa a violência mais crua em imagens de sombras, solidão e morte. Se nas palavras do poeta, o exercício da invenção vocabular e a colagem dos sentidos introduzem um distanciamento irónico na observação do real, as imagens do fotógrafo criam uma poética do fim do mundo, furtivamente entrevisto através das trevas como um definitivo retrato.
Um corpo envelhecido atravessado por longas cicatrizes, de pé, tapando o baixo ventre com uma das mãos, irrompe a abrir o corpo do volume, estranhamente iluminado. Na capa, um colchão com manchas de sangue sobre as volutas e arabescos do seu desenho sujo. É sempre de cicatrizes que se fala, as dos corpos e as que se imprimem nos olhares, as da devastação trazida pela guerra (Sarajevo) e também, ou principalmente, a das miseráveis paisagens das periferias urbanas com que convivemos todos os dias.
Se restam alguns gestos de amor, eles surpreendem-se como intervalos breves entre ruínas e sinais ameaçadores (por exemplo, no belíssimo tríptico aqui impublicável), e é o sucedâneo televisivo da pornografia que toma o seu lugar. Sem hipóteses de redenção, a cruz jaz caída como uma arma inútil, ou é uma miragem absurda num cenário da guerra, ao lado, noutro tríptico, de um mais próximo galo suspenso como uma mágica figura maligna; antes, um Cristo de braços abertos abençoa a desordem do mundo, na montagem acusadora de um díptico.
O arame farpado que acaba o livro é um «leitmotiv» que já abria o catálogo de Serralves em 1990 e que encerrava Tuga (Coimbra 1997), mas vai tendo um sentido cada vez mais terrível. Atravessando a imagem sobre a dupla página final, cerca uma lixeira sem fim e sem exterior, e dele pendem os farrapos de possíveis bandeiras brancas. Não há fuga nem tréguas.
Edição Frenesi em 750 exemplares (€28,10), secreto e compacto como um pequeno breviário negro, Nuez é um livro implacável.
Comments
You can follow this conversation by subscribing to the comment feed for this post.