EXPRESSO Revista de 27-04-1996, pp. 124-5 (seguido por entrevista)
"A matéria da luz "
Uma exposição no CCB e um livro: "Penumbra", de Paulo Nozolino, é uma viagem aos abismos do mundo árabe e da fotografia. As imagens e as palavras do autor
As fotografias de Paulo Nozolino têm agora uma diferente gravidade. Elas decifravam-se antes como cenas de uma autobiografia sempre perseguida entre os retratos familiares e a ficção da viagem. Em trânsito, como uma «testemunha em fuga», dizia-se, as imagens podiam ver-se como o espelho onde se buscava o rosto do fotógrafo, mergulhando na distância de lugares abstractos ou voltando ao ponto de partida, em busca de uma identidade própria questionada como solidão e pertença a um estreito universo demasiado íntimo.
Scalo, Zürich; 1996; 112 pages; 50 monochrome photographs
coedição c/ Fundação das Descobertas / Centro Cultural de Belém
Agora, em Penumbra, exposição e livro, Paulo Nozolino mostra 45 fotografias feitas nos países árabes ao longo de doze anos, desde Marrocos até ao Iémene, como se de um projecto documental se tratasse, atravessando territórios que ocupam diariamente as primeiras páginas da actualidade. O mito da viagem, com que se cumpria também uma ilustre tradição fotográfica sempre recomeçável, seguindo as pegadas de anteriores fotógrafos viajantes para experimentar a frescura de um olhar próprio, Nozolino trocou-o agora por um mapa preciso. Deixada a «autobiografia nómada», fórmula tantas vezes citada, o itinerário privado do fotógrafo ganhou a dimensão da procura de uma identidade colectiva, a de um povo inteiro, com o qual, aliás, se identifica a ideia de nomadismo.
As suas fotografias não são, porém, documentais, tal como se supõe ser a objectividade da informação e a certeza das crenças. As datas ou os lugares de conflito que fazem as notícias não interessam a Nozolino e também as suas fotografias negras não nos apontam vítimas ou carrascos. O sol que queima o deserto e a sombra das ruelas do Cairo equivalem-se numa mesma meia luz, e as tensões adivinhadas são as mesmas de sempre, mais fundas e arcaicas que as bandeiras de circunstância. É de desafiar a invisibilidade — a dos estereótipos, da pressa, da neutralidade distante — que se trata, nestas imagens que fazem da diferença estreita entre o dia e a noite um território de emoções à flor da pele.
Compreender um povo é um projecto impossível senão no segredo das imagens. Penumbra é «essa terra de ninguém entre a luz e a sombra, entre o branco e o preto, entre a vida e a morte», como escreve Jorge Calado no início do belíssimo texto que escreveu para a edição portuguesa. E é também, como adiante diz Nozolino, a experiência de uma extrema dureza da vida associada ao desprendimento material de quem sabe viver sem nada. Descida aos infernos e revelação.
As suas imagens são escuras, mais ainda nas provas de exposição desenhadas pela alquimia do grão, sempre levada à perfeição dos mais absolutos contrastes do preto e branco, que é luz e matéria da fotografia. O que vemos é sempre o bastante porque é o essencial, mas as imagens exigem proximidade física e a atenção do olhar. No instante em que tudo misteriosamente se joga, a densidade da sombra que recorta uma parede é tão significante como a mãe que transporta a criança e ergue um braço heróico — demonstra-o a sequência da exposição. De um muro negro emerge, como uma aparição, um rosto de criança que, ao passar, sopra uma bola de sabão iluminada como uma lâmpada, num desafio à concentração do fotógrafo que é também o oferecimento mágico de um momento irrepetível (Cairo, Egipto, 1992).
A exposição que se estreia no CCB ver-se-á, em Setembro, numa das galerias da FNAC, em Paris, e o livro tem uma simultânea versão internacional e trilingue, publicada por um dos mais importantes editores de fotografia, a Scalo, de Zurique. As condições inultrapassáveis de produção correspondem, por uma vez, à excelência do trabalho de Nozolino.
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